Estudo Propõe Reforma Urgente da Igreja Católica

Giancarlo Zizola, o maior vaticanista da Itália, faz um balanço da instituição hoje

ADRIANA NIEMEYER - Especial para o Estado

 
ROMA - Questionar o poder e a soberania do papado é uma velha história que a cada tanto rebrota. O modo e o tempo dessa renovação, bem como as principais questões a serem discutidas dentro da Igreja, são apresentados no livro A Reforma do Papado, de Giancarlo Zizola, o maior vaticanista da Itália, autor de mais de dez livros, entre eles o polêmico O Sucessor. Zizola recebeu o Estado na sua casa, em Roma, e fez um balanço da igreja católica de hoje e o que poderá ser no futuro.

Estado - O seu livro A Reforma do Papado discute o futuro e a transformação da Igreja. Quais são as reformas mais urgentes?

Giancarlo Zizola - A mais urgente é a da instituição papal. O papa é aceito como a maior e a mais importante referência de todas as igrejas cristãs: protestante, anglicana, ortodoxa, etc. O problema não é o papa em si, mas o despotismo, o poder absoluto, arbitrário da cúria romana. João Paulo II colocou pela primeira vez o tema em discussão. É preciso modificar a estrutura real do ofício papal. Um problema ecumênico, mas que é também um problema interno da Igreja: como deve funcionar o papado para ser considerado indispensável e com carisma pela própria igreja católica e pelas outras igrejas cristãs. Tudo isso significa, na prática, que ele deve reduzir o centralismo do Vaticano. Deve deixar de exercer um governo monárquico absolutista, como já era previsto no Concílio Vaticano 2, para passar a um exercício colegiado da autoridade. Com um poder que seja aconselhado e composto pelos representantes eleitos das conferências episcopais de todos os continentes, além da representação dos patriarcas da igreja oriental, para resolver os problemas da igreja universal. Era essa a maneira como o papado funcionava nos primeiros séculos. Tenho consciência de que o tema é complicado e que a reforma durará pelo menos um século. Porém devemos dar o mérito a João Paulo II por ter aberto o canteiro de obras para construir o caminho da democratização.

Estado - Quer dizer que a igreja católica continua operando nos mesmos moldes dos últimos séculos?

Zizola - A Igreja sofreu enormes transformações. Existiram vários modelos de exercitar o papado. Não foi sempre assim. A monarquia, o absolutismo instalou-se no Vaticano a partir do século 18, sob a influência das idéias políticas da restauração. A reforma do papado parte da necessidade de diferenciar a função do "ministério de São Pedro". Nos seus primeiros séculos, o Vaticano era uma espécie de supremo tribunal, ou seja, a última instância para resolver conflitos que as Igrejas locais não foram capazes de resolver. A segunda função era a de recolher as ofertas de todas as igrejas e redistribuí-las entre as mais pobres. Redistribuir a caridade, tentando sempre usar o princípio de igualdade. É por isso que Santo Inácio se referia ao papa como "presidente da caridade". O mundo mudou. Tornou-se mais complexo e não existia mais a necessidade política que fazia do papa um imperador contra um outro imperador. A maior transformação veio justamente no campo político. O papado perdeu, em 1870, com o Concílio Vaticano 1, a sua soberania política. Essa perda foi uma dura resposta à politização da função do papa como monarca absoluto.

Estado - E o que mudou desde então?

Zizola - O próprio catolicismo mudou. As condições objetivas para a mudança tornam-se necessárias. Algumas cifras já dão idéia de que esta reforma é indispensável. Quando o Concílio Vaticano 1 definiu as cláusulas de infalibilidade do papa, do seu poder de jurisdição de toda a Igreja, o pontífice governava cerca de 230 milhões de fiéis e tinha entre 800 e 900 bispos. Hoje em dia deve contar com mais de 1 bilhão e a maioria, 74%, não está na Europa, mas na América Latina, na África e na Ásia. O número de bispos passou a 4,5 mil. Logicamente, o papa não pode ter relação pessoal com todos eles. Necessita de uma descentralização. Antigamente, o Vaticano tinha relações diplomáticas com quatro Estados, hoje são mais de 170. Com essas cifras, a Igreja deve entender que uma real transformação implica o reconhecimento de que a autoridade não pode ser mantida no mesmo nível de antes. Deve buscar uma reinterpretação da infalibilidade para tornar praticável a função do papado. Senão essa função fica separada da Igreja ou pior, acima dela.

Estado - O sr. acha que o papa começou a distribuir a sua autoridade entre os seus ministros?

Zizola - Não. Este é o ponto fraco, uma carência deste pontificado que por outros aspectos demonstra sua genialidade, sua grande intuição. Sob o aspecto da reforma interna preferiu deixar as coisas como estão. Preferiu esconder o problema em vez de enfrentá-lo. É uma espécie de "estabilização regressiva". Passar por cima dos problemas na esperança de que o sucesso das viagens do papa possa servir como remédio para a crise interna da Igreja, é voltar no tempo. É uma política de remoção dos problemas à base de estádios cheios, grandes viagens, novas relações diplomáticas, etc., deixando à deriva o seu governo.

Estado - Será que dentro da cúria romana não existe a consciência de que são necessárias certas mudanças?

Zizola - Eles têm consciência da importância de uma reforma, mas não sabem exatamente como tocar nos pontos nevrálgicos. Todos sabem que é fundamental resolver questões como a ordenação das mulheres, o ponto de vista moral e sexual das famílias, o fim do celibato, que pode aumentar o número de sacerdotes e resolver o problema da sexualidade dentro da Igreja. Problemas difíceis de resolver, mas que não podem continuar a existir no séculos modernos. Por outro lado, a cúria romana tem medo que uma concessão democrática, uma descentralização ou o menor controle possa enfraquecê-la e levar a uma desagregação interna.

Estado - O grande controle que a Santa Sé ainda tem sobre as dioceses inclui a nomeação de bispos conservadores?

Zizola - A política de escolha dos bispos tem criado problemas com as comunidades locais. Muitos deles se tornaram verdadeiros intrusos, já que foram escolhidos sem consulta prévia na comunidade. Parece até que a Igreja joga um bispo numa diocese com um pára-quedas. Não se pode escolher um bispo, dentro de uma sala fechada, somente de acordo com os critérios políticos e institucionais. É preciso consultar o clero, os outros bispos, os fiéis e levar em conta outros costumes locais. Usam uma política conservadora que acaba criando conflitos até mesmo com os demais bispos, como é o caso da diocese de Viena, que se tornou um verdadeiro escândalo. Um grande cardeal como Konig, que apoiava e imprimia à igreja austríaca uma política de abertura, foi substituído de um momento para o outro pelo cardeal Haas, que tinha sido acusado até mesmo de pedofilia. Por isso repito: a Igreja não deve ter uma política absolutista.

Estado - O sr. pensa que o próprio João Paulo II tem interesse em manter essa política conservadora da Igreja?

Zizola - Consciente da própria impotência diante de uma grande transformação, ele faz aquilo que pode. Por exemplo, depois de ter escrito uma encíclica que trata o tema da reforma do papado, de ter inserido nas leis eleitorais da Igreja as novas regras do conclave para a eleição do novo papa, cria nova cláusula: a partir de agora a eleição de um papa não deve ser feita somente em caso de morte, mas também em caso de renúncia do pontífice. Para mim a inclusão desta cláusula é um sinal importante. Durante a sua última viagem à sua terra natal, a Polônia, João Paulo II decidiu fazer um retiro espiritual. Com essa atitude, tentou enviar-nos a mensagem de que, apesar da grande massa de fiéis que o seguiam, ele pode retirar-se para viver em um velho e simples mosteiro. Acredito que com esse gesto ele queira avisar o que ocorrerá depois do jubileu: a sua renúncia. Ele escreveu essa nova norma e acredito que será ele quem provavelmente a aplicará pela primeira vez. Caso isso ocorra, será uma grande chave, uma primeira ação para a reforma do papado.

Estado - No seu livro O Sucessor, escrito em 1995, o sr. demonstrava que o futuro da Igreja passava pela definição do sucessor de João Paulo II. Agora, vemos um papa adoentado e que, segundo uma sua hipótese, poderá renunciar em breve. O novo papa já está sendo escolhido?

Zizola - O debate sobre a escolha do novo papa começou há pelo menos cinco anos, justamente quando publiquei meu livro. Não é um segredo como se pensa. Todos falam, abertamente, sobre isso nos corredores do Vaticano e nos encontros das autoridades eclesiásticas. É o tema do momento. Discute-se todas as possibilidades seja no caso de renúncia, seja no de morte. Porque este não é um problema reservado ao clube dos cardeais, mas um problema de toda a Igreja. E a partir do momento em que a maioria dos católicos se encontra na região meridional do mundo se supõe que essas comunidades tenham maior direito de intervir nesse debate. É muito importante que se discuta, desde agora, a sucessão papal e que não se deixe a escolha para o último momento, porque não se trata somente de um nome, mas do futuro da igreja católica.

Estado - E quais são as características ou orientações que podem ter mais peso nessa escolha?

Zizola - Não se discute tanto a tendência ou as características do novo papa, mas se busca um herdeiro de João Paulo II. Uma pessoa preparada e capaz para resolver as prioridades da Igreja. O novo papa terá a tarefa de concretizar o diálogo com as grandes religiões mundiais, em particular com o Islã e com os judeus. Deverá enfrentar o problema da relação crítica em confronto com o império global, americano. João Paulo II, de certo modo, iniciou um conflito, uma tensão com os Estados Unidos. Primeiro sobre a guerra do golfo, depois sobre a guerra nos Balcãs; sobre a pena de morte, sobre o tema da família e sexualidade, problemas ecológicos, da justiça, da dívida externa, etc. Em nenhum desses casos, João Paulo II deixou de tomar uma posição dura e divergente da política norte-americana. Eu quase arrisco dizer que existe um novo conflito entre papado e império. Mas desta vez o conflito não se baseia somente nos direitos e na política da Igreja, mas nos direitos do homem. O novo papa só poderá vir dos continentes mais católicos. Pessoalmente, acredito que chegou a hora de um papa latino-americano. Melhor se de origem africana.

Estado - O que o sr. pensa do fenômeno dos carismáticos, missas com cantos, aeróbica, etc., que reúnem milhares de pessoas. É um modo de salvar a Igreja e impedir a fuga dos fiéis para as seitas?

Zizola - Droga. Droga religiosa. Quando vejo esses padres dançando rock para chamar a atenção das massas, penso que eles não têm idéia daquilo que significa e deve ser a missão cristã na história da humanidade. A missão cristã não é converter as massas, mas dar e representar uma liberação dentro da sociedade. Esse sistemas não libertam as pessoas. A consciência é drogada, distraída. Não pode mais refletir, ter um senso crítico. Caso o clero decida tomar essa direção, pensando que desse modo a Igreja pode concorrer com as seitas, erra. Jesus fugia para a montanha quando queriam colocar-lhe a coroa de rei. Não amava o aplauso das massas. Penso que não deva existir um futuro que passe pelos métodos de poder político e da mídia. O futuro da igreja católica estará no trabalho com os pequenos grupos, com as pequenas comunidades espalhadas pelo mundo, que entendem o senso da palavra de Deus e que lutam para que a liberdade de consciência seja tutelada.

Fonte: Arquivo digital do jornal O Estado de S. Paulo


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