O Personagem Mais Importante da Cultura Ocidental

O mundo conta a passagem dos anos a partir de seu nascimento, mas sua influência sobre o pensamento do Ocidente vai além dos calendários, invade a arte e a ciência, a sociedade e altera a definição de indivíduo

KENNETH L. WOODWARD, da Newsweek

Os historiadores não registraram seu nascimento e durante 30 anos ninguém prestou a menor atenção a ele. Judeu do interior montanhoso da Galiléia, famoso por seus ensinamentos e seu poder de cura, ele apareceu em Jerusalém aos 33 anos, durante a Páscoa. Em três dias, ele foi preso, julgado e condenado por traição e executado. Seus seguidores disseram que Deus o ergueu dentre os mortos, mas, exceção feita aos que acreditavam nele, o evento passou despercebido.

Dois mil anos depois, a própria passagem do tempo é contada a partir do nascimento de Jesus de Nazaré. No fim deste ano, os calendários da Índia e da China, bem como os da Europa, América e Oriente Médio, vão registrar a aurora do terceiro milênio. É uma convenção o fato de o nascimento de Jesus marcar os dias para cristãos e não-cristãos. Para os cristãos, Jesus é o portal da história em que a eternidade intercepta o tempo.

Mudança radical - Mas por qualquer padrão secular, Jesus é também a figura dominante da cultura ocidental. Arte e ciência, o eu e a sociedade, política e economia, casamento e família, certo e errado, corpo e alma - tudo foi tocado e radicalmente transformado pela influência cristã. Nem sempre para melhor. O mesmo Jesus que pregava a paz foi usado para justificar as Cruzadas e a Inquisição. O Evangelho que ele proclamou serviu de base para a democracia e para o direito divino dos reis. Freqüentemente perseguidos, os cristãos freqüentemente perseguiram.

Como o cristianismo moldou nosso modo de pensar Deus, nós mesmos, como as pessoas devem viver e como as sociedades devem organizar-se? Há tempos, há poucos ensinamentos de Jesus que não possam ser encontrados nos livros sagrados do judaísmo. "O cristianismo é o judaísmo para os gentios", explica o teólogo Krister Stendahl, da Divinity School de Harvard. Mas o Novo Testamento é basicamente uma Escritura sobre Jesus. Essa é uma mensagem completamente nova.

Os primeiros cristãos eram judeus que pregavam em nome de Jesus, mas eles não falavam apenas de Jesus. Como judeus monoteístas, eles acreditavam em um Deus único. Mas eles também adoravam a Jesus como seu único filho concebido por meio do poder do Espírito Santo. Essa experiência da Trindade estava implícita no Novo Testamento, mas não se encaixava nos moldes monoteístas tradicionais. "Ao fazer perguntas gregas sobre a tradição judaica, os pais da igreja desenvolveram uma doutrina que continua a ser única entre as religiões do planeta", afirma o teólogo David Tracy, da Divinity School da Universidade de Chicago. "Todos os monoteístas tendem a fazer de Deus uma entidade transcendente atemporal e acima de todas as relações", explica.

"A doutrina da Trindade diz que mesmo a realidade divina e todo o seu mistério é intrinsicamente relacionável." Em resumo, o cristianismo legou à cultura ocidental um Deus que se revelou na pessoa de Jesus. O tempo transformou-se: enquanto os gregos e romanos imaginavam um universo fixo e eterno, o cristianismo injetou na consciência ocidental a noção do futuro como obra de Deus.

Vida e morte - O cristianismo trouxe a promessa de vida eterna para um mundo governado pelo destino e pelo capricho dos deuses. No centro da fé cristã está o pressuposto de que Jesus crucificado foi ressuscitado por Deus. A mensagem é clara: ao submeter-se à morte, Jesus destruiu seu poder, tornando assim a vida eterna acessível a todos. Essa afirmação mudou radicalmente a relação entre vivos e mortos de gregos e romanos. Para eles, apenas os deuses eram imortais - e isso os fazia deuses. "A ressurreição é uma enorme resposta para o problema da morte", diz o teólogo John Dunne, da Universidade Notre Dame. "A idéia é de que os cristãos vão com Cristo da morte para a vida eterna; a morte passa a ser um nascimento."

Uma vez que a morte perdeu seu poder sobre a vida, esta passa a ter novo significado. Nesse sentido, o sociólogo Rodney Stark, da Universidade de Washington, vê dramáticas evidências nas altas taxas de sobrevivência entre cristãos nas várias pragas que atingiram o antigo Império Romano. "Os romanos atiravam as pessoas na rua aos primeiros sintomas da doença, porque sabiam que era contagiosa e tinham medo de morrer", diz Stark. "Os cristãos, porém, cuidavam de seus doentes porque não se importavam de morrer."

Mártires e santos - Os que foram martirizados por causa de sua fé foram reverenciados como santos. Seus ossos se tornaram relíquias e suas tumbas, a meta das peregrinações. Assim nasceu o culto cristão aos santos, um culto dos mortos que confundia as elites de Roma. "Vocês acrescentam corpos recém-falecidos àquele (o de Cristo) morto há tempos", queixava-se o imperador Juliano, que perseguia cristãos no século 4. "Vocês encheram o mundo de tumbas e sepulcros."

Como símbolo da nova religião, a cruz era sinônimo também de uma inversão das normas vigentes. O sofrimento era nobre, e não meramente patético, quando aceito como imitação do martírio de Cristo. O perdão tornou-se o símbolo do verdadeiro cristão. Mais radicalmente ainda, Jesus ensinava que no reino de Deus os últimos seriam os primeiros. "No Novo Testamento, você encontra Jesus mais entre os mendigos do que entre os governantes, mais entre os doentes do que entre os sãos, entre as mulheres e crianças e não entre os conquistadores, entre as prostitutas e leprosos e não entre os sacerdotes", diz Martin Marty, da Universidade de Chicago.

O cristianismo também desafiou as noções vigentes do que seria uma vida virtuosa. Enquanto Aristóteles citava a prudência, a justiça, a coragem e a temperança como as virtudes da vida, Jesus enfatizava a humildade, a paciência e a paz em seu Sermão da Montanha.

Nos tempos romanos, essa compaixão cristã se manifestava no cuidado especial para com as viúvas, órfãos, idosos e doentes. Quando as autoridades romanas exigiram que São Lourenço, um dos primeiros mártires cristãos, mostrasse as riquezas da igreja, ele lhes mostrou os famintos e doentes.

Se, como diz Harold Bloom, Shakespeare inventou o humano, pode-se usar a mesma hipérbole para afirmar que o cristianismo descobriu o indivíduo. No mundo antigo, os indivíduos eram reconhecidos como membros de tribos, nações ou famílias e se comportavam de acordo. Para os judeus isso significava - e significa - que a relação com Deus depende da aliança que fez com Israel, seu povo escolhido. Mas os Evangelhos estão cheios de passagens em que Jesus trabalha sozinho, curando a doença de uma mulher, perdoando os pecados de um homem e conclamando cada um deles à conversão pessoal. Ele convida tanto judeus como gentios a entrar no reino de Deus. "O cristianismo descobre a individualidade no sentido em que enfatiza a conversão pessoal", explica Bernard Mcginn, professor de teologia histórica na Divinity School da Universidade de Chicago. "Isso libera o indivíduo das restrições da família e da sociedade."

Padrões elevados - O sentido da individualidade cresceu e a prece tornou-se mais pessoal: é possível dirigir-se a Deus chamando-o de Pai. Mas à medida que cresceu essa intimidade com Deus, aumentou também o senso interior de não-merecimento. Como moralista, Jesus fixou padrões elevados: aquele que olhasse para a mulher do próximo com desejo, dizia, cometia "adultério em seu coração". Com a evolução da Igreja Católica, estabeleceu-se a prática da confissão e do arrependimento. E nas Confissões, de Santo Agostinho (354-430), temos o primeiro documento da história do que Stendahl chama de "consciência introspectiva". Figura monumental de sua época, Agostinho continua a ser o pai da autobiografia, o primeiro grande psicólogo e o autor que antecipou os modernos romances que exploram a consciência individual.

Situação da mulher - Em Roma como na sociedade judaica, as mulheres eram consideradas como seres inferiores aos homens. Os maridos podiam divorciar-se de suas mulheres, mas elas não podiam separar-se de seus maridos. Nos círculos rabínicos, só os homens podem estudar a Torá. Jesus desafiou essas normas. Embora só homens fossem seus apóstolos, ele aceitou a presença de mulheres no seu círculo de amigos e discípulos. Ele também baniu o divórcio, exceto nos casos de adultério.

O apelo dos cristianismo para as mulheres foi uma das principais razões de seu crescimento rápido em relação às demais religiões do Império Romano. Naquela época, como agora, as mulheres constituíam a maioria dos cristãos. A nova religião não só oferecia às mulheres status mais elevado e influência dentro da igreja, como lhes dava proteção enquanto mulheres e mães. A igreja pôs fim ao costume de casar meninas de 11 ou 12 anos com homens bem mais velhos, o que deu origem a casamentos mais simétricos, como diz Stark. Do judaísmo, o cristianismo herdou um profundo respeito pelo casamento, que mais tarde foi transformado pela Igreja Católica em sacramento, um vínculo indissolúvel.

Num desafio ainda mais radical às normas da época, a igreja abriu espaço para virgens, homens e mulheres, que consagravam suas vidas a Deus, rompendo com o controle que as famílias exerciam sobre o destino de seus membros. Homens e mulheres celibatários puderam, assim, ter uma identidade distinta do casamento.

Proteção de crianças - A igreja também protegeu as crianças dos caprichos tirânicos de seus pais. Pela lei romana, os pais tinham o direito de cometer infanticídio. As meninas, que eram consideradas apenas como mais uma despesa, eram as principais vítimas. Um estudo das lápides de um cemitério em Delfos mostra que das 600 famílias de alta classe da região, apenas seis criaram mais de uma filha.

De forma indireta, o cristianismo também transformou a definição de masculinidade do mundo antigo. Em vez da imagem do guerreiro, Jesus aconselhou os homens a ser pacificadores, a oferecer a outra face.

Não foi difícil defender a tese da não-violência enquanto os cristãos estavam distantes do poder. "Eles nunca imaginaram que César se tornaria cristão", diz Jaroslav Pelikan, especialista em história da igreja de Yale, referindo-se à conversão de Constantino, em 312. Também não imaginavam que o cristianismo viria a ser uma religião oficial de Estado. Com isso veio o poder de declarar guerra e perseguir hereges.

De seu trono imperial, Constantino fez os dois. Mas no Ocidente, enquanto o Império Romano ruía, Santo Agostinho fazia sérias restrições à guerra. Entre outros princípios expressos em sua A Cidade de Deus, Agostinho afirmou que só a guerra defensiva era justificável e, mesmo assim, por breves períodos de tempo. O objetivo dos vencedores deveria ser a paz, não a vingança.

Os princípios de Santo Agostinho não impediram a explosão de conflitos - muitos deles em nome de Jesus -, mas, ao menos, ao longo dos séculos, transformaram a guerra em algo menos bárbaro.

Monges e mosteiros - A identificação do Estado com o cristianismo, porém, fez com que para muitos ficasse difícil seguir os ensinamentos de Cristo. Para escapar dessa igreja cada vez mais comprometida com o mundano, muitos fugiram para o deserto onde podiam viver na mais absoluta pobreza, castidade e obediência. Eles se tornaram a base da Norma de São Benedito, que estabeleceu as comunidades monásticas.

Por mais de um milênio, os mosteiros produziram santos que estabeleceram as várias vertentes do misticismo e espiritualidade cristãos. Os monges também foram os reformistas da igreja. Por causa deles, o celibato tornou-se obrigatório para os bispos.

Missionários - Foram os monges que se tornaram os grandes missionários. Enquanto os bárbaros desmontavam o Império romano, os monges copiavam e disseminavam os clássicos latinos, preservando a antiga civilização e lançando as bases da nova.

Foram eles que fundaram as primeiras universidades em Paris e Bolonha. Foi um dominicano, Tomás de Aquino, que com sua Suma Teológica coroou a Idade Média com sua síntese de filosofia e teologia. Outro monge, Martinho Lutero, foi o pai da reforma protestante.

Uma das medidas da influência do cristianismo sobre a cultura ocidental está nas inovações que propôs e sobreviveram. "A lei canônica medieval foi transposta para as leis de Estado", conta Harold Berman, professor emérito de direito em Harvard. Entre elas, os julgamentos racionais e não por ordálio, o consentimento como base do casamento, a necessidade de provar a intenção de dano para configurar o crime e a proteção legal aos pobres contra os ricos.

Herança sombria - O legado da Cristandade medieval tem também seu lado sombrio. Desde o Natal de 800, quando Leão III coroou Carlos Magno imperador, política e religião tornaram-se indissociáveis. Os resultados são mistos. Se o Estado não tivesse defendido o cristianismo, a Europa provavelmente seria muçulmana hoje. Mas as Cruzadas, com o objetivo de libertar a Terra Santa das mãos dos turcos, foi uma desculpa para a pilhagem. A união entre Estado e Igreja justifica quase todas as ações militares.

O Novo Testamento esboça os fundamentos de uma sociedade cristã e a Idade Média foi um longo esforço para criá-la. A doutrina da igreja tornou-se a doutrina imposta pelo rei. Mesmo Santo Agostinho reconhecia que o braço secular da sociedade deveria ser usado para esmagar a heresia. A igreja criou a Inquisição, mobilizando batalhões de dominicanos e franciscanos na caça aos hereges. Em 1252, o papa Inocêncio IV permitiu a tortura dos suspeitos. Dois séculos depois, os reis católicos, Fernão de Aragão e Isabel de Castela, criaram outra Inquisição para descobrir e banir judeus e muçulmanos convertidos que professavam suas religiões às escondidas. Mulheres idosas e crianças foram torturadas e seus descendentes proibidos de freqüentar as universidades e ocupar cargos públicos. Nos séculos seguintes ampliariam suas listas de hereges para incluir protestantes e praticantes de feitiçaria.

Novas forças - A Reforma abalou a Cristandade, mas libertou novas energias. Os protestantes traduziram a Bíblia do latim para os vários idiomas europeus. Missionários europeus que partiram da Europa para a Ásia, África e América carregaram consigo a bandeira do colonialismo e do imperialismo. Mas foram eles também, dos jesuítas do século 16 aos protestantes dos século 19, que desenvolveram a forma escrita dos idiomas nativos, sem falar em gramáticas e dicionários. Nesse sentido, preservaram culturas locais que teriam desaparecido. Fundaram escolas e hospitais, mudando as condições de vida nesses locais.

À medida que o mundo caminha para o terceiro milênio, ele parece mais distante do movimento iniciado pelo nascimento de Jesus. Mas o mesmo Evangelho continua a ser pregado. O cristianismo ainda é perseguido: só no século 20, houve muitos mais mártires - especialmente sob Hitler e Stalin - do que todas as vítimas condenadas pelos césares. Mas as diferenças são impressionantes. A Europa pós-cristã parece espiritualmente esgotada. Nos Estados Unidos, o secularismo é a ideologia dominante. No entanto, nunca, desde a Reforma, houve tanta unidade entre os cristãos. A despeito do holocausto - ou talvez por sua causa - "o povo a quem Jesus pertencia e o povo que pertence a Jesus", como diz Pelikan, não são mais inimigos espirituais.

Numericamente, fica claro que o futuro do cristianismo está nas mãos das jovens igrejas da África, dos hispânicos das américas e nos milhões de inflexíveis cristãos chineses. O cristianismo reúne a mais diversificada sociedade conhecida na história da humanidade. Mas ninguém sabe ao certo que formas e idéias o Evangelho irá assumir no terceiro milênio. Sobre o futuro, a Bíblia diz apenas: "Eis que faço novas todas as coisas." (Tradução de Ruth Helena Bellinghini)

Fonte: Arquivo digital do jornal O Estado de S. Paulo


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