O cardeal e o filósofo debatem o milênio
LUIZ ZANIN ORICCHIO Em uma época de confusão mental pode parecer nada menos que extemporânea uma serena discussão sobre ética, valores morais e metafísica, travada entre dois senhores cultos e de boa argumentação. No entanto, o pequeno livro Em Que Crêem os Que não Crêem (Record, 160 páginas, R$ 18,00), de Umberto Eco e Carlo Maria Martini, é nada menos que apaixonante. Umberto Eco é o semiólogo e romancista conhecidíssimo no País por livros como Obra Aberta, A Estrutura Ausente, O Nome da Rosa, O Pêndulo de Foucault e A Ilha do Dia Anterior. No Brasil, quem conhece Martini são apenas aqueles que acompanham o noticiário religioso de Roma. Lá, no entanto, ele é figura notável. Cardeal de formação jesuítica, autor de dezenas de obras, polemista que costuma se expressar pela imprensa, foi papabili, considerado favorito na linha de sucessão de João Paulo II no início dos anos 90. Em suma, duas personalidades notáveis da cultura italiana e dois pesos pesados intelectuais. O livro é produto de um debate público e epistolar, travado nas páginas do jornal italiano Liberal. Oito cartas nas quais se discutem temas como a obsessão laica pelo apocalipse com a iminência do milênio; o início real da vida humana com as implicações que essa questão tem para a discussão sobre o aborto; a posição da mulher na sociedade contemporânea e o ponto de vista da Igreja sobre isso; e, finalmente, as dúvidas sobre a possibilidade de uma ética laica. Depois de terminado o debate, o jornal convidou outros intelectuais para participar por escrito. As intervenções estão no livro e algumas delas são muito interessantes. Mas o centro da discussão, a bola do jogo, fica mesmo entre Eco e Martini. Não debatem temas tão abstratos quanto pode parecer à primeira vista. Aliás, nada abstratos, já que essas questões concernem a todos e a cada um. A primeira delas diz respeito à idéia do apocalipse, implícita com a chegada do milênio. Eco lembra-se de que o fim do primeiro milênio, ao contrário do que se esperava, foi saudado mais com curiosidade que com terror. Com a aproximação do segundo milênio, diz o escritor, faz-se um balanço dos temores disponíveis e entre esses não está tanto o fim do mundo e o julgamento final quanto o fim das ideologias e da solidariedade, o advento de um egoísmo inédito e do consumismo irrefreável. Conclui que o pensamento do fim dos tempos, na contemporaneidade, se deslocou do mundo cristão para a esfera laica. Martini, como faz qualquer interlocutor civilizado, começa por concordar com o oponente, mas aos poucos passa a deslocar o centro da questão, trazendo-a para a sua seara. Relembra que a tradição do apocalipse traz em si uma grande carga utópica. Terror, porque significa o fim de uma ordem. Mas, como essa ordem é indesejável, representa, também, uma reserva de esperança, "combinada, porém, com um conformismo desolado em relação ao presente". Martini argumenta que a perspectiva do apocalipe, de um ponto de vista cristão, aponta para a salvação. A história, por esse viés, tem uma direção, mas não se esgota nela, o que levaria a um ponto de vista materialista. Vai além e aponta para a salvação da alma, dando um sentido para a vida e também para a morte. O segundo problema posto por Eco diz respeito ao início da vida e suas implicações no caso do aborto. Questão espinhosa para o debate leigo e, na prática, inabordável pelo domínio católico, porque restrita ao campo do dogma. Eco é um leigo contrário ao aborto, mas que pode admiti-lo sob certas circunstâncias. Quer dizer, para um tema polêmico e não consensual, abre espaço para o que chama de "negociação" - um toma-lá-dá-cá teórico talvez inevitável quando é impossível estabelecer uma regra fixa. Tanto mais que a posição a ser assumida diante do aborto terá implicações na maneira de considerar a mulher: se ela é dona ou não do seu corpo e em que circunstâncias e como é lícito interromper uma gravidez indesejada. Claro, o tema é profundamente incômodo no debate cristão, mesmo porque, como lembra Eco, a Igreja mudou radicalmente de posição em relação à mulher. No contexto histórico das antigas escrituras, ela era vista como ser inferior, sem direitos, mas no limiar do ano 2000 essa posição se tornou anacrônica, insustentável e odiosa. Martini sabe disso. Tanto assim que defende a interdição absoluta ao aborto com argumentos que dizem respeito unicamente ao feto. Segundo sua interpretação, do ato da concepção nasce um ser novo. O que isso quer dizer? Que ele é diferente dos dois elementos que o geraram. Trata-se de um ser já de início concebido como individualidade e identidade. Eliminá-lo é infrigir o mandamento que ordena não matar. A ponderação de Eco no que diz respeito aos direitos das mulheres deve ser contornado com mais sutileza. Mesmo porque não se refere apenas à decisão de interromper uma gravidez, mas diz respeito também à exclusão das mulheres do sacerdócio. Eco examina as Escrituras, esmiúça Tomás de Aquino e Agostinho, mas não consegue, segundo suas palavras, encontrar um bom motivo lógico para essa interdição. Em certa passagem, Martini parece responder de maneira imperial: a Igreja não satisfaz expectativas, celebra mistérios. Ele admite que, em oposição às leis do seu tempo, Jesus teria indicado de maneira clara uma posição favorável à igualdade entre os sexos. E prossegue: "Isso é um dado de fato, do qual a Igreja deve, no tempo devido, tirar todas as conseqüências oportunas..." No tempo devido, grife-se. A vida biológica é breve, mesmo as sociedades perecem, mas a Igreja trabalha com tempos longos. Tão longos que, ele reconhece, "a Igreja, no curso dos séculos, tende incessantemente à plenitude da palavra divina, até que nesta sejam cumpridas as palavras de Deus". Assim, no que tange a questões como o sacerdócio feminino e tantas outras, o que há a fazer é esperar que essa tendência à perfectibilidade se realize e se passe ao ato aquilo que existe ainda apenas em potência. Essa sutilíssima disjunção - entre o texto da palavra revelada e a circunstância histórica que permitiria a sua aplicação - produziu alguma insatisfação ao longo da história. Voltaire, que, como bom iluminista, era bastante apressado, não falava da Igreja sem ajuntar a frase: "Écrasez l'infâme" - esmaguem a infame. Ao morrer não se reconciliou, afirmando que amava Deus, mas detestava superstições. O terceiro ponto discutido entre o cardeal e o filósofo refere-se à possibilidade de existir uma ética laica, isto é, desvinculada de qualquer religião formal. Nesse momento, sente-se que Martini puxa com maior determinação a brasa para sua sardinha. Afirma que um absoluto moral exige uma fundamentação "que não esteja ligada a nenhum princípio mutável ou negociável". Sente-se aqui a resposta, postergada, à tese de Eco sobre a "negociação" em torno de conceitos ou atitudes não consensuais. Para o leigo trata-se de agir segundo o momento e o bom senso. Para o religioso não há meio-termo: ética não se negocia. Precisa de um fundamento estável e este só a religião (não necessariamente a católica) pode fornecer. Como, por exemplo, perdoar um inimigo sem o fundamental precedente do Cristo, que, da cruz, perdoou aqueles que o condenaram? A resposta de Eco é nada menos que brilhante. Argumenta que a ética nasce quando entra em cena o outro, esse outro sem o qual não sou nada nem me conheço. Preconiza uma ética natural, nascida apenas da natureza intersubjetiva da condição humana. A tal ponto, argumenta, que se a vida do Cristo fosse apenas uma ficção inventada por animais tristes, porque têm a consciência da morte, essa história seria tão milagrosa quanto a hipótese de que o filho de um Deus real tenha encarnado entre homens de carne e osso. Martini e Eco sabem que o fundamento da ética, a existência do bem e do mal, é um problema permanente. Não evidente em si e presente, de maneira empírica, do começo dos tempos até hoje. O debate entre o leigo e o homem de fé reatualiza essa questão que, como se costuma dizer, não pode ser respondida nem pode deixar de ser feita.
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