|
Edição 1 628 -
15/12/1999 |
|
|
![](imagesveja/religiao12.jpg) Os
desafios do cristianismo às portas do novo
milênio
A doutrina de Cristo, que dominou a vida
do Ocidente nos últimos 2.000 anos, continua vigorosa
e com capacidade de adaptar-se ao mundo moderno
Maurício Cardoso
Ninguém
desconhece a história que se segue, crendo ou não em sua
origem sagrada. Um judeu das montanhas da Galiléia com
reputação de doutrinador e capacidade de curar as pessoas
aparece aos 33 anos em Jerusalém, durante a Páscoa judaica. Em
três dias, desenrola-se em torno dele o drama de solidão,
humilhação e morte que acompanha a humanidade há vinte
séculos. Ele é preso, julgado, condenado por traição e
executado na cruz ao lado de criminosos comuns. Nenhum
historiador registrou inequivocamente sua passagem pelo mundo
dos homens. Mas 2.000 anos
depois que os eventos acima ocorreram, segundo os quatro
evangelistas, Jesus é o personagem dominante da vida
ocidental. Mesmo entre as pessoas que não fazem parte do
rebanho atual de mais de 2 bilhões de seguidores do
cristianismo, ele é um símbolo poderoso.
A moral e os costumes, a arte e a ciência, a política e até
a economia, toda a bagagem cultural com que a humanidade
entrará no próximo milênio foi tocada e, freqüentemente,
moldada pelo cristianismo. Nenhum poeta ou o mais genial dos
escritores conseguiu criar um personagem tão influente como
esse aprendiz de carpinteiro que dizia a seus seguidores, sem
rodeios, ser o filho de Deus: "Eu e meu Pai somos um". Até os
séculos passaram a ser medidos a partir do nascimento de
Jesus. O cristianismo triunfou de geração em geração,
enfrentando e vencendo desafios com uma força que para os
fiéis só pode ser de inspiração divina. Como registra o Velho
Testamento: "Até aqui nos ajudou o Senhor". Mas como será
daqui para a frente? Como o cristianismo enfrentará os
desafios que se apresentam agora, no alvorecer do terceiro
milênio? Como serão a face e a voz de Jesus Cristo num mundo
em furiosa transformação tecnológica e de costumes? Firmemente
assentados na história vitoriosa da religião cristã, os
estudiosos não se abalam com o gigantismo dos obstáculos que
enxergam pela frente. "Podemos mandar câmaras fotografar os
anéis de Saturno e as luas de Júpiter, mas elas nunca vão
revelar a verdadeira face de Deus nem enviar uma imagem do
paraíso", diz o sociólogo americano Rodney Stark, da
Universidade de Washington, autor de The Future of
Religion (O Futuro da Religião). "A religião em sua forma
mais pura sempre estará fora do alcance das especulações
racionais."
O que
impressiona na trajetória histórica dos seguidores de Cristo é
o fato de que a religião podia muito bem ter-se estatelado.
Nos primórdios do primeiro milênio, o cristianismo sofreu
bastante até deixar a condição de seita judaica dissidente e
se tornar a religião oficial do Império Romano. Na aurora do
segundo milênio, imersos nas trevas da Idade Média, os
cristãos mandaram seus guerreiros às cruzadas com a missão de
combater em nome de Cristo os infiéis muçulmanos, na época
detentores de uma civilização refinada com conhecimentos de
astronomia, matemática e filosofia. Entendiam também de coisas
mais prosaicas mas muito úteis naquele tempo, como a
fabricação de aço mais resistente para as espadas da guerra
santa. Mais tarde o cristianismo escaparia da armadilha cruel
da Inquisição e da incômoda condição de fiador de monarquias
sanguinárias e corruptas baseadas no direito divino dos reis.
O ramo mais vigoroso do cristianismo, o católico, pode
reivindicar como milagre o fato de ter sobrevivido a um grupo
de papas dissolutos, assassinos e gananciosos que reinaram há
cerca de 500 anos. Eles faziam guerra, elegiam os filhos
bispos, tinham amantes, vendiam promessas de salvação eterna a
ricaços que se dispunham a pagar por essa garantia. Basta
examinar a ficha de um deles para ter boa idéia do conjunto.
Alexandre VI (1492-1503), o papa Bórgia, foi eleito para o
trono de Roma por um conclave corrupto, teve quatro filhos
ilegítimos, promoveu orgias no Vaticano. Foi acusado pelos
contemporâneos de assassinatos e complôs. "O cristianismo em
geral e a Igreja Católica, em particular, resistiram a
impactos tão brutais que acho justificável seus seguidores
acreditarem na natureza divina de seus alicerces", diz Werner
Kelber, pesquisador do Novo Testamento, que se define como
incrédulo.
Montagem de Carlos Neri sobre foto de
Valdemir Cunha
![](imagesveja/religiao2b.jpg) |
O Cristianismo
cresceu e se espalhou no mundo empurrado pela força
poderosa de sua mensagem. O mandamento de amar
ao próximo foi uma verdadeira revolução em sua
época (Doni
Tondo, de Michelangelo, sobre a catedral de
Brasília) |
Quais são os desafios do cristianismo às portas do novo
milênio? VEJA ouviu uma dezena de teólogos e estudiosos da
religião e leu seis livros recentes que tratam da questão em
busca de uma resposta satisfatória. O resultado da
investigação é uma lista fascinante de indagações.
Jesus
histórico – Não se fala aqui do Jesus dos altares.
Tampouco daquele que cada um traz no peito quando comunga da
fé dos cristãos. O Jesus histórico é o personagem que nasceu,
viveu e morreu na Palestina, em carne e osso, num período
histórico determinado, numa época em que reinava o imperador
romano Augusto. Este personagem está sob intensíssima
investigação. Um grupo de pesquisadores americanos reunidos
sob o rótulo de Seminário de Jesus irrompeu recentemente na
cena dos estudos religiosos sustentando que o trabalho dos
quatro evangelistas, Mateus, Marcos, Lucas e João, não tem
valor como prova material da existência de Cristo. O quarteto
escreveu suas versões entre quarenta e 100 anos depois da
morte de Jesus, e são as fontes mais próximas do mestre da
Galiléia.
Segundo os integrantes do Seminário de Jesus, os
evangelistas enxergariam seu retratado como um profeta do
Velho Testamento e não como o fundador de uma nova religião
revolucionária. "Com a evolução dos mecanismos científicos de
estudo das relíquias e provas históricas o mais certo é que, a
cada ano, se vai provar que muito pouco da narração do Novo
Testamento é confiável", diz o canadense John Dominic Crossan,
um dos mais ativos pesquisadores do grupo. "Não podemos ter
certeza de nada que Jesus realmente disse porque não existem
testemunhos irrefutáves daquela época", argumenta Stephen
Mitchel, autor de um documentário de televisão famoso, O
Evangelho Segundo Jesus.
Os estudiosos do Seminário de Jesus são contraditados por
uma corrente mais tradicionalista, para a qual o fato de não
brotarem evidências arqueológicas da passagem de Cristo pela
Palestina só prova uma coisa: que é muito difícil reconstruir
a história arcaica da humanidade, especialmente quando se
buscam sinais de indivíduos particulares, mesmo que eles
tenham tido uma existência extraordinária. Outra corrente se
acha satisfeita com as provas já existentes. Fora da
Bíblia, é encontrada apenas uma referência à passagem
de um certo Jesus pela Palestina. Flávio Josefo, historiador
judeu de cidadania romana, em seu livro Antigüidades dos
Judeus, escrito no ano de 94, fala de um certo "Jesus, um
homem sábio, que fazia coisas extraordinárias e pregava para o
povo". Outro autor romano, Plínio, o Jovem, do fim do século
I, descreve um grupo de fiéis rezando e cantando hinos a
"Cristo, como se fosse um deus".
Secularização – Em bom português
significa simplesmente que as pessoas tendem, pela própria
dinâmica da vida moderna, a fazer ouvidos de mercador para os
ensinamentos das igrejas. A indiferença de quem ouve é o pavor
de todos os doutrinadores. As pessoas querem ser bons
católicos ou evangélicos sem ter de seguir à risca cada um dos
ditames dos sacerdotes e pastores. É possível ser um bom
cristão e fazer sexo antes do casamento ou usar métodos
anticoncepcionais artificiais como a pílula? Pesquisa do
Seminário de Jesus com católicos americanos chegou a um número
avassalador: 83% das pessoas acham que não cabe aos religiosos
dar opiniões incontrastáveis sobre tais questões do foro
íntimo de cada um. Pesquisas semelhantes feitas no Brasil, na
Itália e em outros países de forte tradição católica apontam a
mesma tendência, mesmo que os números sejam menos
contundentes.
Modernidade –
No passado, a Igreja Católica afastou as mulheres do
sacerdócio e proibiu os padres de se casarem. Atualmente, isso
começa a parecer para muitos devotos um dogma que engessa a fé
em regulamentos ultrapassados.
Ecumenismo
–
É extremamente complexo o desafio de manter a
unidade da doutrina cristã ao mesmo tempo que se fazem
aberturas na direção de outras crenças. Como admitir a
existência de outros credos sem perder a fé na hegemonia dos
princípios cristãos? Católicos e protestantes, que deveriam
ser os mais próximos, ainda não resolveram suas divergências
essenciais. Excomungado pelo papa Leão X em 1521, o monge
alemão Martinho Lutero foi o pai da Reforma Protestante.
Lutero rebelou-se contra a venda de indulgências, uma fonte
poderosa de divisas para o papado. Foi com dinheiro arrecadado
com a venda de indulgências que a Basílica de São Pedro foi
construída. Apesar dos vários acenos de boa vontade, essa
questão central não foi debatida a sério nos encontros
ecumênicos de alto coturno da hierarquia religiosa de ambos os
lados. Católicos e judeus, separados no berço de suas
civilizações, ainda têm um longo caminho a percorrer para
estabelecer bases mínimas de convivência.
A ameaça
do islã – O islamismo é a
religião que mais cresce no mundo. Embora seja marcadamente
étnico, identificado com os árabes, o islamismo tem alcançado
pelas migrações uma penetração crescente na Europa, o mais
tradicional reduto cristão. "O islamismo já é a segunda
religião mais numerosa na Alemanha, na França e na Itália",
diz o padre e historiador da Igreja, José Oscar Beozzo. O
embate com o islã traz embutida uma contradição
incontornável.
O cristianismo vive hoje num ambiente da mais ampla liberdade
religiosa, o que permite, por exemplo, que o islã construa uma
de suas maiores mesquitas em plena Roma dos santos e dos
papas. Mas os cristãos têm de disputar espaço com o islamismo
que exclui, a vertente fundamentalista da religião criada por
Maomé no século VII da era cristã. O fundamentalismo islâmico
não só é contra a liberdade de fé como é a favor da teocracia,
do Estado religioso. A construção de qualquer templo que não
seja uma mesquita é rigorosamente proibida nos países
islâmicos. O islamismo não se contrapõe apenas ao
cristianismo. "Com o fim do comunismo, é hoje o único foco de
resistência ao pensamento de livre mercado ocidental. Ao se
fechar dentro da prática religiosa, procura impedir a
destruição de sua identidade religiosa e nacional", diz o
filósofo Mario Sergio Cortella, professor da Pontifícia
Universidade Católica, PUC, de São Paulo. "Com os dólares do
petróleo e as armas que herdaram da Guerra Fria, eles se
tornaram fortes o bastante para enfrentar o pensamento
dominante da civilização cristã ocidental."
Os pecados
do cristianismo – O papa João
Paulo II tem se empenhado como nenhum outro antecessor para
tirar dos ombros da Igreja os pecados acumulados nos tempos
duros da afirmação da fé cristã. "Os cristãos não podem dar as
boas-vindas ao Terceiro Milênio sem se arrepender de seus
pecados históricos", disse o papa. O chefe da Igreja tem feito
isso com estilo e graça. Ele desculpou-se em nome da Igreja
pela condenação de Galileu Galilei, o sábio punido pela
Inquisição por sustentar que a Terra não era o centro do
universo. João Paulo II delimitou onde começa a fé e termina a
ciência. "A missão da Igreja não é ensinar como o céu foi
feito, mas mostrar o caminho até lá", disse o papa.
Desculpou-se também pelo fato de a Igreja ter sido avalista
ideológica das atrocidades cometidas pelos conquistadores
europeus na América portuguesa e espanhola há 500 anos.
Todas as desnorteantes questões acima têm sido respondidas
pela hierarquia das igrejas cristãs. Os protestantes armaram a
mais fenomenal defesa em torno da idéia de que é uma imensa
perda de tempo procurar evidências científicas da passagem de
Jesus pela Palestina. O mais ardoroso defensor da tese de que
a sacralidade da fé se basta é o historiador americano Luke
Timothy Johnson, da Universidade Emory. Num livro inflamado,
escrito numa linguagem acessível, Johnson argumenta que os
caçadores da arca perdida do cristianismo acabam eles próprios
atacando verdades firmadas no decorrer de séculos de adoração
cristã. "Eles estão distorcendo questões de fundamental
importância para sustentar seus pontos de vista
materialistas", diz Johnson. O papa João Paulo II deu uma
contribuição decisiva à questão em 1989. Nessa época, testes
científicos haviam sido feitos no Santo Sudário, o manto que
teria servido de mortalha para o corpo de Jesus. Esses testes
desqualificaram a relíquia como uma tela produzida na Idade
Média. Diante dessas revelações, depois colocadas em dúvida
por testes subseqüentes, o papa não vacilou. "Acredito que o
Santo Sudário é genuíno", disse ele. Johnson também mantém o
respeito pela relíquia. "Quando uma questão é elevada a um
mistério da fé não basta uma medição de carbono 14 para
derrubá-la de sua glória", diz o historiador. Testes mais
recentes reabilitaram a relíquia. Ela conteria partículas de
pólen de flores que só existem na região onde se acredita que
Jesus tenha morrido.
A maioria dos teólogos vê na história do cristianismo um
permanente movimento de pêndulo entre o que eles chamam de
carisma e de poder. Ou entre a modernidade e o dogma. Teria
sido sempre assim na história do cristianismo, de modo que as
atuais contestações sobre o celibato ou a ordenação de
mulheres seriam apenas temáticas novas de questões que se
repetem ciclicamente. Quando nascem, as igrejas são tomadas
pelo fervor religioso, pelo encantamento dos devotos com a
revelação divina, com a liturgia e com a doutrina. Essa força
espontânea tem seus espasmos na História – ela vai e volta.
Ela brota da necessidade humana de desfrutar a possibilidade
do sobrenatural. Chega então outro momento pendular em que,
além da espontaneidade e da fé, o movimento precisa criar ou
firmar estruturas e burocracias para sobreviver. "A história
do cristianismo reflete de maneira clara este movimento
pendular", explica Décio Passos, professor de ciência da
religião da PUC de São Paulo. Para alguns teólogos, portanto,
não há razão para preocupações. Por esse prisma, o
cristianismo estaria recuperando neste fim de milênio parte do
frescor de seus primeiros dias, numa nova volta do pêndulo que
estaria levando os fiéis de novo às missas e aos cultos, como
de fato acontece.
No seu início, o cristianismo era uma seita do meio rural
judaico que congregava uma pequena comunidade reunida em torno
dos ensinamentos de Jesus. Seus adeptos estavam ali mais para
ajudar uns aos outros do que em busca da salvação eterna. O
cristianismo cresceu e se espalhou no mundo empurrado pela
força poderosa de sua mensagem. O mandamento de amar ao
próximo como a si mesmo foi uma novidade completa para a
época. A capacidade de servir ao outro foi a mola propulsora
que transformou a seita de dissidentes judeus em religião
oficial do Império Romano no curto espaço de 300 anos. O
americano Rodney Stark apegou-se a esse detalhe para explicar
o fenômeno do crescimento vertiginoso do cristianismo, que
passou de 1.000 devotos no
ano 40 para mais de 30 milhões três séculos depois. De acordo
com Stark, uma epidemia, provavelmente de varíola, que matou
um terço da população do Império Romano por volta do ano 165,
foi a tábua de salvação do cristianismo. Entregues à própria
sorte diante da calamidade, sem poder contar com o Estado que
não se ocupava dessas coisas, os romanos pagãos ficaram
maravilhados com a atitude dos cristãos que se encarregaram de
cuidar das vítimas sem espera de recompensa. "A nova fé deu
melhores explicações à sociedade, os valores de amor e
caridade serviram melhor na atenção aos desvalidos", escreveu
Stark num outro livro, The Rise of Christianity (O
Crescimento da Cristandade). Foi a revolucionária atitude de
solidariedade do cristianismo primitivo que lhe arrebanhou
seguidores.
O pêndulo da religião
moderna inclina-se hoje para seu lado carismático, para uma
Igreja mais preocupada em louvar a Deus e servir ao próximo do
que em promover a revolução, influenciar governos, mandar nos
destinos terrenos das pessoas. Como sempre aconteceu, a Igreja
se dispõe a desempenhar sua missão recorrendo aos recursos
fornecidos pela época e ambiente peculiares. Assim como nas
origens – adotou em sua liturgia elementos do teatro para
fazer sua mensagem mais compreensível aos fiéis iletrados –,
atualmente ela lança mão dos meios que a tecnologia moderna
lhe oferece. "Vivemos na era da informação e as religiões que,
como o cristianismo, se estabeleceram por meio do uso da
palavra hoje têm de se integrar à cultura da imagem, da
televisão e dos megaeventos", diz José Oscar Beozzo.
A época moderna, mesmo criando desafios, parece propícia ao
cristianismo, que está numa fase oposta ao marasmo de anos
atrás, quando as igrejas se apoiavam mais nas formalidades do
ritual do que no coração dos fiéis. "A religião
institucionalizada, estruturada para conservar sua tradição e
seu modo de vida, acaba perdendo a força", observa o padre
Alberto Antoniazzi, coordenador do curso de teologia da
arquidiocese de Belo Horizonte. O desafio da religião de Jesus
no mundo frenético no fundo seria da mesma natureza daqueles
que ela circunavegou no passado: adaptar-se sem perder a
essência. Para quem já enfrentou dilemas abissais em outros
períodos históricos, não parece uma tarefa muito difícil.
| | |
![](imagesveja/religiao5.gif) | |