Jerusalém,
Mitos e Realidades
Le
Monde Diplomatique |
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Marius
Schattner é jornalista, autor de Histoire de la droite israélienne,
da editora Complexe, Bruxelas. Como colaborador do Le Monde Diplomatique,
ele escreve que, como todo o mito, o da “Jerusalém libertada” tem raízes
longínquas. Traduz o vínculo, de dois mil anos, que une os judeus a Sion,
uma das colinas que simbolizam Jerusalém – uma Jerusalém única, para
os judeus
O mito da
indivisibilidade de Jerusalém, “capital eterna do Estado de Israel”,
data de 1967, quando o exército ocupou a Esplanada das Mesquitas.
Do ponto de vista religioso, o lugar mais sagrado da Terra era o Templo,
construído por Salomão onde Abraão, segundo a bíblia, sacrificara um
carneiro
Os próprios judeus nunca quiseram orar na Esplanada, com receio de
cometerem um sacrilégio abominável ao pisarem sobre o lugar sagrado do
Templo
Paradoxalmente, o sionismo – nascido no final do século XIX – iria
adotar uma atitude ambivalente com relação à cidade que originara seu
nome
“A maldição de Deus parece pairar sobre esta cidade”, escrevia
Gustave Flaubert em seus Carnets de Voyage (11 de agosto de 1850).
Em seu livro O Estado
dos judeus, Theodor Herzl, o pai do sionismo, promete aos cristãos “uma
forma de extraterritorialidade” dos lugares santos
Haïm Weizmann, que tomou a direção do movimento sionista após a primeira
Guerra Mundial, não tolerava a cidade de Jerusalém
Ben Gurion compreendia que se tinha que começar por criar um Estado, objetivo
mais crucial que reivindicações histórico-religiosas sobre a cidade santa
“Eu sempre soube distinguir entre Eretz Israel (Grande Israel, ou seja, toda a
Palestina) e um Estado dentro de Eretz Israel”, escreveu Ben Gurion
Assim como Herzl, Ben Gurion se interessava pela nova Jerusalém, situada na
parte ocidental. Era essa, segundo ele, que deveria ser uma “cidade judia”
Até junho de 1967, a questão da reunificação – ou seja, a conquista da
parte oriental da cidade – nunca fora colocada pelos dirigentes israelenses
Uma imagem e uma voz
continuam gravados na memória coletiva dos israelenses desde a guerra dos seis
dias: a foto dos pára-quedistas, olhando, extasiados, para o Muro das Lamentações;
e a voz do comandante daquela mesma brigada, anunciando: “O Monte do Templo é
nosso.”
No dia 7 de junho de 1967, realmente, o exército israelense acabava de
conquistar a Esplanada das mesquitas Al-Aqsa e o Domo do Rochedo – Monte do
Templo, para os judeus –, assim como toda a cidade de Jerusalém.
À saída da esplanada, Moshe Dayan, o ministro da Defesa, declarava a uma rádio:
“Na manhã de hoje, o Tsahal libertou Jerusalém, a capital dividida de
Israel. Voltamos aos mais sagrados de nossos lugares santos e jamais nos
separaremos deles .”
O mito da “Jerusalém
libertada”
Vem desse dia o mito da indivisibilidade de Jerusalém, “capital reunificada e
eterna do Estado de Israel”. Esse dogma foi de tal forma enraizado que é até
difícil imaginar por que os dirigentes do Estado, até 1967, e, antes deles, os
do movimento sionista, nunca se tivessem empenhado seriamente em anexar Jerusalém
Oriental. E ainda mais: a questão da soberania judia sobre o Monte do Templo
jamais se colocara em termos temporais.
Como todo o mito, o da “Jerusalém libertada” tem raízes longínquas.
Traduz o vínculo, de dois mil anos, que une os judeus a Sion, uma das colinas
que simbolizam Jerusalém – uma Jerusalém única, para os judeus, enquanto
cristãos e muçulmanos voltam suas preces para Roma e Meca.
Do ponto de vista religioso, o lugar mais sagrado da Terra era o Templo, construído,
segundo a bíblia, pelo rei Salomão no monte Moria, onde Abraão sacrificara um
carneiro em lugar de seu filho Isaac. Encontrava-se nesse Templo o “santo dos
santos” e ali só podia entrar o sumo-sacerdote. Sua destruição pelos
romanos, no ano 70, não põe em dúvida a santidade do lugar, de acordo com uma
tradição que vem dos filósofos judeus do século XIII. “À margem dos rios
da Babilônia, nós nos sentamos e choramos, lembrando-nos de Sion”, dizia o cântico
dos primeiros exilados, após a queda do primeiro Templo, no ano 587 antes de
Cristo.
Para nunca esquecer esse sofrimento, em qualquer casamento judeu, os noivos
quebram um copo e fazem uma promessa em voz alta: “No dia em que eu te
esquecer, Jerusalém, que eu esqueça também a minha mão direita.”
O sacrilégio abominável
Durante os últimos quatro séculos, o Muro das Lamentações (Kotel, em
hebraico) foi ganhando uma importância religiosa crescente. Fiéis ali
compareciam para orar e chorar pela queda do Templo, do qual é o último vestígio.
Pediam, em suas preces, pela chegada dos tempos messiânicos, que iriam
coincidir com o fim do exílio. O Templo seria então reerguido, mas nunca
antes, como diz o Talmude: “A reconstrução do Templo, e do altar, não
parece caber aos homens.”
O Waqf, guardião dos bens muçulmanos, sempre foi condescendente para com as
preces junto ao Kotel, mas excluía a possibilidade de qualquer tipo de culto
judeu na Esplanada propriamente dita. Construída no mesmo lugar onde fora o
Templo, seis séculos após a destruição deste, a esplanada Haram Al-Sharif
(Nobre Santuário) é o terceiro lugar santo do islamismo, depois de Meca e
Medina. Os próprios judeus nunca o quiseram, com receio de cometerem um sacrilégio
abominável ao pisarem sobre o lugar sagrado do Templo sem antes se terem
purificado.
Uma atitude
ambivalente
Numa certa época, peregrinos judeus “subiam” à Terra Santa, forçados
pelas perseguições e estimulados pela chegada iminente do messias. Alguns,
mais pobres, o faziam em busca dos benefícios da ajuda da Haluka . Nenhum
deles, no entanto, sonhava em erigir um Estado ou fundar uma capital em Jerusalém.
Surgido no final do século XIX, o sionismo nunca pretendeu esperar pelos tempos
messiânicos para “reunir os exilados”. O que, por sinal, lhe custaria os anátemas
dos judeus ortodoxos, que assistem, impotentes, à recuperação, pelo
nacionalismo, de seus símbolos religiosos. Paradoxalmente, esse novo movimento
iria adotar uma atitude ambivalente com relação à cidade que originara seu
nome.
“Uma forma de
extraterritorialidade”
O obstáculo que separava a Jerusalém celestial da Jerusalém terrestre iria
produzir, nos primeiros sionistas, a irresistível decepção relatada por
tantos visitantes da Terra Santa. “A maldição de Deus parece pairar sobre a
cidade, cidade santa para três religiões que se afunda no tédio, no marasmo e
no abandono”, escrevia Gustave Flaubert em seus Carnets de Voyage (11 de
agosto de 1850). E o pai do idioma hebreu moderno, Eliezer Ben Yehuda, evocaria,
por seu lado, o choque que sentiu ao conhecer “a cidade de David, destruída e
deserta, rebaixada aos abismos da desonra ”.
Theodor Herzl, que estava principalmente empenhado em obter a proteção das potências
para o seu projeto de um Estado judeu, tomou o cuidado de se manter à margem de
causas ou reivindicações, que se mostravam exageradas ou prematuras, sobre
Jerusalém. Em seu livro O Estado dos judeus (publicado em 1896), o fundador do
sionismo político promete aos cristãos “uma forma de
extraterritorialidade” dos lugares santos. No dia 18 de maio de 1896, por
ocasião de um encontro, em Viena, com o núncio apostólico Agliardi, ele chega
a considerar a hipótese de extraterritorialidade para toda a cidade de Jerusalém,
prevendo que a capital do futuro Estado judeu seria fundada ao Norte da cidade
santa. E daria essas mesmas garantias a seus interlocutores turcos É bem
verdade que essas promessas, meramente táticas, nada custavam...
As armadilhas da
santidade
Haïm Weizmann, que tomou a direção do movimento após a primeira Guerra
Mundial, não tolerava Jerusalém. Esta “encarnava, a seus olhos, o contrário
do sonho sionista, e simbolizava o judaísmo obsoleto”, escreve o historiador
israelense Tom Segev .
David Ben Gurion – que o general Ehud Barak toma como modelo – foi bastante
sensível às armadilhas da santidade. Se é fato que desejasse ver um dia a
cidade inteira de Jerusalém como a capital do Estado judeu, ele compreendia que
se tinha que começar por criar esse Estado, objetivo infinitamente mais crucial
que as reivindicações histórico-religiosas sobre a cidade santa.
Um patriotismo estéril,
idiota e pretensioso
À direita sionista, que desde o final da década de 20 organiza “comitês de
defesa do Kotel”, Ben Gurion propõe a política do possível. Em 1937, ele
aceitaria o plano da Comissão Peel, que propunha a partilha da Palestina em
dois Estados – um, judeu, abrangendo uma pequena parte do território; o
outro, árabe; Jerusalém permaneceria como um enclave britânico. Acusado de
promover um “sionismo sem Sion”, o presidente do Executivo sionista
respondeu que era necessário aproveitar a oportunidade de criar um Estado judeu
independente, na Palestina, para mais tarde se preocupar em ampliá-lo. “Eu
sempre soube distinguir entre Eretz Israel (Grande Israel, ou seja, toda a
Palestina) e um Estado dentro de Eretz Israel”, escreveu, na época. “Sei do
valor das orações e dos cânticos sobre o Monte Sion, mas após os repetirmos
três vezes ao dia, trezentas e sessenta e cinco vezes por ano, durante mil e
oitocentos anos, isso não nos deu uma polegada de terra, nem nos aproximou, um
passo sequer, da redenção”, ironizou ele.
Mas alguns sionistas se opunham, na época, à divisão municipal de Jerusalém.
Resultado: a prefeitura ficou nas mãos dos palestinos. “Nossa situação
seria bem melhor hoje (...)”, escreveu Ben Gurion, “se tivéssemos
compreendido a necessidade de dividir Jerusalém, criando um município judeu,
autônomo. Para nosso azar, um suposto patriotismo – estéril, idiota e
pretensioso – fez com que a decisão fosse outra (...). O resultado disso é
que a cidade foi realmente unificada, mas sob a autoridade dos Nashashibi e dos
Khaladi (duas importantes famílias palestinas), e tudo isso porque este ou
aquele politiqueiro de Jerusalém queria que reinássemos sobre o Monte do
Templo ou a Mesquita de Omar.”
O plano de partilha da
ONU
Assim como Herzl, ele se interessava principalmente pela nova Jerusalém,
situada na parte ocidental. Era essa, segundo ele, que deveria ser uma “cidade
judia”, mas desvinculada da cidade velha, cujo destino era tornar-se um
“museu espiritual e religioso para todas as religiões ”. De acordo com suas
concepções, a Agência Judia – ala executiva do movimento sionista dirigida
por Ben Gurion – apresentou, em 1938, um projeto bastante minucioso que
propunha que a parte oriental, abrangendo toda a cidade velha, continuasse sob
controle britânico, enquanto a parte ocidental se tornaria a capital do Estado
judeu.
A 29 de novembro de 1947, a Assembléia Geral das Nações Unidas adotou um
plano de partilha inspirado nesse projeto. A Resolução 181 previa um estado
judeu, um Estado árabe e um “regime internacional especial” para Jerusalém
e os lugares santos. Ben Gurion teve a sabedoria de aceitá-la – contra a
oposição, minoritária, da direita sionista. Mas os palestinos recusaram o
plano e a batalha, para eles, terminou em desastre: a Nakba (“tragédia”, em
árabe). Não somente o Estado palestino não foi criado, como as forças judias
se aproveitaram da guerra para aumentar em um terço o território destinado ao
Estado de Israel, expulsando centenas de milhares de palestinos.
Provocações da
direita
A vitória israelense não foi, no entanto, total em Jerusalém. O exército
jordaniano ocupou o bairro judeu da cidade velha, cujos dois mil habitantes
tiveram que se refugiar na parte ocidental, no final de maio de 1948. Sitiados e
com poucos homens e munição, os defensores do bairro não tinham qualquer
possibilidade de agüentar sem ajuda externa. Só restava a alternativa de uma
retirada ou reforçar sua defesa. Ocorre que a direção sionista não fez uma
coisa nem outra: por um lado, não queria renunciar ao bairro judeu devido aos
seu significado simbólico, mas por outro não queria enviar para ali tropas que
lhe poderiam ser mais úteis em outra frente.
Acatando as resoluções da ONU sobre a internacionalização de Jerusalém, Ben
Gurion fez um discurso solene diante do Parlamento, a 13 de dezembro de 1949,
anunciando que “Israel tem e terá uma única capital, Jerusalém, a
eterna”. Subentendia-se que se tratava de Jerusalém Ocidental, mas o
primeiro-ministro não o disse explicitamente. Pouco antes, Menahem Begin, líder
da direita nacionalista, havia proposto que ficasse claro, com todas as letras,
que a capital de Israel abrangia a cidade velha e os lugares santos. Sarcástico,
o chefe do governo perguntou-lhe se estava pensando em tomar militarmente a
cidade velha e, como não era esse o caso, concluiu que a proposta não tinha
qualquer sentido.
“O que fazer com
este Vaticano?”
Até junho de 1967, a questão da reunificação – ou seja, a conquista da
parte oriental da cidade – nunca fora colocada pelos dirigentes israelenses.
Somente a direita, que permanece na oposição até a formação de um governo
de união nacional, na véspera da guerra, insiste no discurso ritual de uma
“libertação de Jerusalém”. A parte oriental da cidade parece esquecida
pelos israelenses.
Na noite de 5 de junho de 1967, é a vez do primeiro-ministro, Levy Eshkol, se
preocupar. “Têm que ser cuidadosamente pesadas as conseqüências políticas
que uma ocupação da cidade velha poderia ter”, declara, em seu gabinete. Na
manhã do dia seguinte, o ministro da Defesa, general Moshe Dayan, também
hesita em dar a ordem de tomar a cidade velha: “O que é que vamos fazer com
este Vaticano?”, confidencia ele ao general responsável pela operação . Mas
a tentação, irresistível, acaba ganhando.
Daí em diante, a história é conhecida: uma febre místico-nacionalista toma
grande parte da população judia; comemora-se, simultaneamente, uma vitória
que parece miraculosa e o “reencontro do povo de Israel com Eretz Israel”.
Abre-se o caminho para a escalada de uma extrema-direita religiosa.
Precauções necessárias
No dia 10 de junho, os rolos compressores de tratores israelenses põem abaixo o
bairro árabe dos Mograbis, abrindo um enorme espaço diante do Muro das Lamentações:
mais de 100 famílias são jogadas para fora de suas casas, manu militari, após
terem recebido um aviso com três horas de antecedência. No dia 27 de junho, o
Knesset (parlamento) aprova uma emenda que aplica a legislação israelense à
parte oriental da cidade – o que, na prática, significa a anexação.
Quanto às novas fronteiras municipais, elas abrangem, a leste, um máximo de
terras e um mínimo de palestinos. No entanto, as autoridades israelenses tomam
precauções para evitar problemas com a totalidade do mundo muçulmano no que
se refere à Esplanada das Mesquitas. Assim que esta foi ocupada, Moshe Dayan
obriga os soldados a baixarem uma bandeira israelense que tinham içado. No dia
17 de junho, ele confirmaria ao Waqf o controle sobre Haram Al-Sharif. A 20 de
agosto, o governo proibiu os judeus de rezarem na esplanada, contendo, dessa
maneira, as perigosas iniciativas do grã-rabino do exército, Shlomo Goren .
Negociando o inegociável
Mas esse rabino louco não é o único a ver na conquista do Monte do Templo o
início da redenção final. Talvez decorra daí a indignação do filósofo
Yeshayahu Leibovitz com o culto – em resumo, pagão – feito no Kotel, que
ele denominou de “discotel ”. Mais adequado ao espírito que então
prevalecia, André Néher escreveria que “nesta manhã do Chavuot (o
pentecostes judeu, que, nesse ano, caiu no dia 7 de junho), todos os judeus irão
sentir que uma etapa messiânica acaba de ser vencida”. Para ele, o slogan
“Jerusalém não é negociável” é um ato de fé – no mínimo, “uma
plataforma comum a todos os partidos políticos israelenses, sem exceção ”.
No meio tempo, percebeu-se claramente que Jerusalém é negociável – e mesmo
negociada, segundo os acordos de Oslo de 1993. Em apenas algumas semanas do ano
2000, a idéia de um consenso sobre o assunto foi para o espaço. Não foi feito
o bastante, nem com a necessária rapidez, para que um número incontável de
palestinos deixe de perder suas vidas. Em nome de Al-Aksa.
Fonte: http://www.ig.com.br/
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