O senhor do céu
contra São Mateus
Por um desses folhetos
que são distribuídos na missa, eu soube que domingo passado
foi o Dia Mundial de Comunicação para os católicos. Ali estava
o resumo de uma mensagem de Papa João Paulo II sobre a era da
comunicação global. A mensagem era um estímulo à evangelização
pelos meios de comunicação, o que é legítimo e,
fundamentalmente, sensato. Ele citava o evangelho de Mateus -
''O que vos é dito aos ouvidos, proclamai-o sobre os
telhados.'' (Mt 10, 27) -, falava em pregar o evangelho
''pelas antenas e transmissores da comunicação de massa'' e
dizia que, ''por mais que pareça indiferente e hostil à
Igreja, a mídia é ocasião para se proclamar Cristo via
satélite e por Internet''. Eu, que não creio, que não comungo,
li o texto com uma ponta de torcida a favor.
Depois da leitura, porém, o que retive foi
uma sensação de que aquelas palavras estavam atrasadas uns
trinta anos. Mesmo a alusão a Mateus resultava obsoleta -
ninguém mais tem antenas no telhado. Ora, os telhados. O texto
falava da comunicação como se falasse da TV Tupi. Soou-me
ultrapassado. Às vezes, vencido. Numa das frases, percebi uma
autoironia involuntária: ''A mídia pode ser meio de
evangelização e transmissão dos valores do Reino de Deus.'' O
trecho parecia referir-se não à Igreja de Roma, mas à Igreja
Universal do Reino de Deus - esta, sim, um milagre de mídia.
Isso deve incomodar os católicos: por que a Igreja Universal é
esse sucesso de comunicação? E por que a Igreja Católica é um
fracasso?
Arrisco uma interpretação. A Igreja Universal
dá certo não por saber ''usar'' a mídia - mas por ser, ela
mesma, uma realidade mediática. Seu altar é a TV. Seu berço é
a TV. Seu tempo é a TV. Os programas da Record-Universal
celebram o paraíso do consumo e reforçam todos os fetiches da
publicidade: sucesso financeiro, carro zero, curas
instantâneas, vitórias massacrantes sobre os concorrentes. Por
automatismo ou por inocência, são uma mistura de Organizações
Tabajara (''Seus problemas acabaram!'') com uma
neurolingüística de segunda.
Já a Igreja Católica não é uma realidade
mediática - seu tempo e sua historicidade são outros. Por
isso, imagino, sua abordagem dos meios de comunicação passa
por um estranhamento - e vem marcada pela culpa de quem se vê
às voltas com uma aliança traiçoeira. No folheto, o mesmo
texto que recomenda o uso da mídia condena a sua natureza:
''Hoje, não se sabe mais o que é verdade e ilusão na mídia''.
A análise é acertada, mas, em lugar de esclarecer, confunde o
leitor. Como anunciar a verdade pelas antenas se, por elas,
verdade e ilusão não se distinguem?
Talvez o cristianismo seja incompatível com a
monstruosidade da mídia global. A ética do cristianismo fala
de compaixão, enquanto a mídia só sabe se expandir se for
impulsionada pela sede de consumo, pelo exclusivismo, pelo
achatamento das diferenças culturais, pelo imperativo do gozo.
É estranho imaginar o catolicismo pegando uma carona num
''embalo'' desse tipo. A lógica da mídia - contra a ética da
solidariedade - promove a concentração de poder e a
exacerbação irracional do capitalismo. Para além das
fronteiras nacionais - e das fronteiras celestes.
O céu já não é o limite - é campo de batalha.
Na mesma semana em que pensava sobre as idéias do Papa, li um
bom perfil de Rupert Murdoch na edição de junho da revista
americana Brills Content. Murdoch é um personagem e
tanto, admirável e temível. Herdou do pai dois jornais
australianos em 1952. Hoje, aos 70 anos, é dono da News Corp,
um império global que inclui o Times de Londres, o
título TV Guide nos Estados Unidos, a Fox (em cinema e
TV), enfim, um meganegócio que fatura 14 bilhões de dólares
por ano. É o quarto maior conglomerado de mídia do mundo - e o
maior a ser controlado por um único homem. ''Agora, Murdoch
está conspirando para dominar o mundo'', diz a reportagem,
para completar em seguida: ''Ou pelo menos o céu.'' De fato, o
magnata australiano está obcecado pela sua rede planetária TV
digital interativa via satélite, a Sky. Já tem satélites
espalhados por todo lugar (só na Inglaterra, seu serviço conta
com cinco milhões de assinantes). Se conseguir entrar no
mercado americano, terá consumado sua supremacia. Será o
senhor de todo o céu - e de um mercado que, em cinco anos,
deve contar com 226 milhões de assinantes em todos os
continentes.
Por que que Murdoch quer dominar o mundo?
Para vender. Para vender diversão, roupas, passagens aéreas,
filmes e até mensagens dos evangelistas de auditório (desde
que lhe paguem a comissão). Muito além dos telhados, muito
acima dos aviões de carreira, essa é a única verdade da nova
ordem mediática - assim na terra como no céu. A TV interativa,
a Record-Universal, tudo são lojas de prazeres imaginários
para os nossos espíritos ressequidos. O sucesso na TV cobra um
preço de morte. Os comunicadores católicos fracassam porque
hesitam em ser lojistas. Talvez seja melancólico, patético,
mas é melhor assim.
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