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Domingo, 3 de Junho de 2001

O senhor do céu contra São Mateus


Por um desses folhetos que são distribuídos na missa, eu soube que domingo passado foi o Dia Mundial de Comunicação para os católicos. Ali estava o resumo de uma mensagem de Papa João Paulo II sobre a era da comunicação global. A mensagem era um estímulo à evangelização pelos meios de comunicação, o que é legítimo e, fundamentalmente, sensato. Ele citava o evangelho de Mateus - ''O que vos é dito aos ouvidos, proclamai-o sobre os telhados.'' (Mt 10, 27) -, falava em pregar o evangelho ''pelas antenas e transmissores da comunicação de massa'' e dizia que, ''por mais que pareça indiferente e hostil à Igreja, a mídia é ocasião para se proclamar Cristo via satélite e por Internet''. Eu, que não creio, que não comungo, li o texto com uma ponta de torcida a favor.

Depois da leitura, porém, o que retive foi uma sensação de que aquelas palavras estavam atrasadas uns trinta anos. Mesmo a alusão a Mateus resultava obsoleta - ninguém mais tem antenas no telhado. Ora, os telhados. O texto falava da comunicação como se falasse da TV Tupi. Soou-me ultrapassado. Às vezes, vencido. Numa das frases, percebi uma autoironia involuntária: ''A mídia pode ser meio de evangelização e transmissão dos valores do Reino de Deus.'' O trecho parecia referir-se não à Igreja de Roma, mas à Igreja Universal do Reino de Deus - esta, sim, um milagre de mídia. Isso deve incomodar os católicos: por que a Igreja Universal é esse sucesso de comunicação? E por que a Igreja Católica é um fracasso?

Arrisco uma interpretação. A Igreja Universal dá certo não por saber ''usar'' a mídia - mas por ser, ela mesma, uma realidade mediática. Seu altar é a TV. Seu berço é a TV. Seu tempo é a TV. Os programas da Record-Universal celebram o paraíso do consumo e reforçam todos os fetiches da publicidade: sucesso financeiro, carro zero, curas instantâneas, vitórias massacrantes sobre os concorrentes. Por automatismo ou por inocência, são uma mistura de Organizações Tabajara (''Seus problemas acabaram!'') com uma neurolingüística de segunda.

Já a Igreja Católica não é uma realidade mediática - seu tempo e sua historicidade são outros. Por isso, imagino, sua abordagem dos meios de comunicação passa por um estranhamento - e vem marcada pela culpa de quem se vê às voltas com uma aliança traiçoeira. No folheto, o mesmo texto que recomenda o uso da mídia condena a sua natureza: ''Hoje, não se sabe mais o que é verdade e ilusão na mídia''. A análise é acertada, mas, em lugar de esclarecer, confunde o leitor. Como anunciar a verdade pelas antenas se, por elas, verdade e ilusão não se distinguem?

Talvez o cristianismo seja incompatível com a monstruosidade da mídia global. A ética do cristianismo fala de compaixão, enquanto a mídia só sabe se expandir se for impulsionada pela sede de consumo, pelo exclusivismo, pelo achatamento das diferenças culturais, pelo imperativo do gozo. É estranho imaginar o catolicismo pegando uma carona num ''embalo'' desse tipo. A lógica da mídia - contra a ética da solidariedade - promove a concentração de poder e a exacerbação irracional do capitalismo. Para além das fronteiras nacionais - e das fronteiras celestes.

O céu já não é o limite - é campo de batalha. Na mesma semana em que pensava sobre as idéias do Papa, li um bom perfil de Rupert Murdoch na edição de junho da revista americana Brills Content. Murdoch é um personagem e tanto, admirável e temível. Herdou do pai dois jornais australianos em 1952. Hoje, aos 70 anos, é dono da News Corp, um império global que inclui o Times de Londres, o título TV Guide nos Estados Unidos, a Fox (em cinema e TV), enfim, um meganegócio que fatura 14 bilhões de dólares por ano. É o quarto maior conglomerado de mídia do mundo - e o maior a ser controlado por um único homem. ''Agora, Murdoch está conspirando para dominar o mundo'', diz a reportagem, para completar em seguida: ''Ou pelo menos o céu.'' De fato, o magnata australiano está obcecado pela sua rede planetária TV digital interativa via satélite, a Sky. Já tem satélites espalhados por todo lugar (só na Inglaterra, seu serviço conta com cinco milhões de assinantes). Se conseguir entrar no mercado americano, terá consumado sua supremacia. Será o senhor de todo o céu - e de um mercado que, em cinco anos, deve contar com 226 milhões de assinantes em todos os continentes.

Por que que Murdoch quer dominar o mundo? Para vender. Para vender diversão, roupas, passagens aéreas, filmes e até mensagens dos evangelistas de auditório (desde que lhe paguem a comissão). Muito além dos telhados, muito acima dos aviões de carreira, essa é a única verdade da nova ordem mediática - assim na terra como no céu. A TV interativa, a Record-Universal, tudo são lojas de prazeres imaginários para os nossos espíritos ressequidos. O sucesso na TV cobra um preço de morte. Os comunicadores católicos fracassam porque hesitam em ser lojistas. Talvez seja melancólico, patético, mas é melhor assim.

eugenio@jb.com.br

Eugênio Bucci é colunista do JB e secretário editorial da Editora Abril

 

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