Quem é o Responsável Pelo Mal?

Robson Ramos

Algumas passagens bíblicas dizem que Deus mata, fere, destrói, etc. Outras, afirmam que Ele é bondoso, misericordioso e amoroso. Como harmonizar isto?

Em diversos textos do Antigo Testamento e alguns do Novo, Deus Se apresenta, ou é apresentado, como o responsável por tudo que acontece, inclusive o mal. Por exemplo:

"Vede agora que Eu sou, Eu somente, e mais nenhum Deus além de Mim: Eu mato, e Eu faço viver; Eu firo, e Eu saro; e não há quem possa livrar alguém da Minha mão." "O Senhor é o que tira a vida, e a dá; faz descer à sepultura, e faz subir. O Senhor empobrece e enriquece, abaixa e também exalta." "... Eu sou o Senhor, e não há outro. Eu formo a luz, e crio as trevas; faço a paz, e crio o mal; Eu o Senhor, faço todas estas coisas." Deut. 32:39; 1 Sam. 2:6; e Isa. 45:6 e 7.

Isto causa perplexidade. Se Deus realmente mata, fere, empobrece, destrói, cria o mal, etc., por que dizem outras passagens das Escrituras que Ele é bondoso, misericordioso, amoroso? Como resolver esta aparente contradição? É Deus o responsável pelo mal? Estas interrogações estão na mente de muitas pessoas.

Explicando Isaias 45:7, os autores do SDABC (Comentário Bíblico Adventista do Sétimo Dia, em inglês) declaram que Deus éo autor somente da "luz" e da "paz". Ele apenas permite o "mal", moral ou material, para que homens e anjos possam testemunhar os resultados do afastamento dos eternos princípios de justiça expressos em Seus mandamentos. Mas, na Bíblia, Deus é freqüentemente representado como causando aquilo que Ele não impede.

E sobre II. Tessalonicenses 2:11 - onde o apóstolo São Paulo afirma que, aos pecadores impenitentes, Deus "manda a operação do erro, para darem crédito à mentira" - dizem também os nossos comentaristas:

"Deus os abandona ao curso que eles próprios escolheram. Nas Escrituras freqüentemente é dito que Deus faz o mal que Ele não evita acontecer."

Vários exemplos bíblicos podem ser citados a fim de comprovar essa idéia. Eis alguns:

1. Embora fossem eles que o haviam vendido aos mercadores ismaelitas, quando se revelou a seus irmãos como o governador do Egito, José lhes disse: "Deus me enviou adiante de vós... Assim não fostes vós que me enviastes para cá, e, sim, Deus, que me pôs por pai de Faraó, o senhor e o a a sua casa, e como governador em toda a terra do Egito." Gên. 45:7 e 8.

2. No livro de Jó, onde é claro como um cristal que Satanás é o responsável pelas desgraças que sobrevieram ao fiel patriarca, lê-se: "Perguntou o Senhor a Satanás: Observaste o Meu servo Jó?... Ele conserva a sua integridade, embora Me incitasses contra ele, para o consumir sem causa." Jó 2:3. Desse modo, a responsabilidade pelos males sofridos por Jó é posta sobre Deus.

A Bíblia Viva, porém, traz uma interessante paráfrase do mesmo verso: "... Jó ainda Me ama de coração, apesar de Eu ter permitido que você tirasse tudo que ele possuía, inclusive os filhos."

3. Há dez passagens bíblicas em que o endurecimento do coração de Faraó é atribuído a Deus - Êxodo 4:21; 7:3; 9:12; 10:1, 20 e 27; 11:10; e 14:4,8 e 17. Mas há também dez textos nos quais se indica claramente que Faraó endureceu seu próprio coração - Êxodo 7:13, 14 e 22; 8:15, 19 e 32; 9:7, 34 e 35; e 13:15. Até os filisteus, no tempo de Samuel, compreendiam isto. (Ver 1 Sam. 6:6.)

4. Depois de descrever o suicídio de Saul e seu escudeiro (1 Crôn. 10:4 e 5), diz o escritor inspirado: "Assim morreu Saul, por causa de sua transgressão cometida contra o Senhor, por causa da palavra do Senhor, a que ele não guardara; e também porque interrogara e consultara uma necromante, e não ao Senhor, que por isso o matou e transferiu o reino a Davi, filho de Jessé." 1 Crôn. 10:13 e 14.

5. Em II Samuel 24:1, está escrito: "Tornou-se a ira do Senhor a acender-se contra os israelitas, e incitou a Davi contra eles, dizendo: Vai, levanta o censo de Israel e de Judá." Mas, na passagem paralela a esta, 1 Crônicas 21:1, lê-se: "Então Satanás se levantou contra Israel, e incitou a Davi a levantar o censo de Israel."

Comentando estes textos, diz o SDABC:

"Estas declarações não são contraditórias; elas simplesmente representam dois aspectos de um mesmo fato. Em II Samuel 24:1 temos outro exemplo em que se atribui a Deus o mal que Ele não impede. Na realidade, foi Satanás que instigou o orgulho e a ambição que induziram o rei Davi a tomar medidas para aumentar seu exército, com o propósito de estender as fronteiras de Israel mediante novas conquistas militares."

Mas, na Bíblia, "freqüentemente é dito que Deus realiza aquilo que Ele não impede. Enfatuado, cheio de orgulho e auto-suficiência, Davi foi levado pelo maligno a realizar esse censo em Israel. E Deus não Se interpôs, permitindo que essa corrupta motivação de Davi se transformasse em ação. Quando o Senhor permite que o mal siga livremente seu curso e seus efeitos sejam observados, estes são muitas vezes descritos como se ocorressem pela ativa intervenção de Deus, embora sejam realmente as forças do mal que estão agindo e produzindo seus ruinosos resultados".

Tendo este princípio em mente, muitas outras declarações causadoras de perplexidade podem ser entendidas, como se verá a seguir ao serem analisados outros incidentes relatados nas Escrituras.

As Serpentes "Enviadas" por Deus

Em Números 21:4-6, lê-se:

"Então partiram do monte Hor, pelo caminho do Mar Vermelho, a rodear a terra de Edom; porém o povo se tornou impaciente no caminho. E falou contra Deus e contra Moisés: Por que nos fizeste subir do Egito, para que morramos neste deserto, onde não há pão nem água? E a nossa alma tem fastio deste pão vil. Então o Senhor mandou entre o povo serpentes abrasadoras, que mordiam o povo; e morreram muitos do povo de Israel."

Mas o SDABC, com base na luz adicional concedida por Deus a Ellen G. White (ver Patriarcas e Profetas, págs. 451 e 452), afirma: "De acordo com a narrativa feita por Moisés, 'o Senhor mandou entre o povo serpentes abrasadoras' (Núm. 21:6). No entanto, essas 'serpentes abrasadoras' não foram repentinamente criadas ou miraculosamente transportadas de alguma outra região naquela ocasião; elas já infestavam o deserto em que os filhos de Israel estavam viajando, e teriam sido uma fonte de real perigo e a causa de freqüentes mortes, se Deus não houvesse, por milagre, subjugado esses répteis venenosos. Mas quando o povo se voltou contra Deus, que os protegera dos muitos perigos do deserto, Deus simplesmente retirou Sua proteção, e morte foi o resultado." (Do comentário sobre II Crônicas 18:18.)

"As mortes se deveram ao retirar-se a mão protetora de Deus. A parte da região por onde viajavam estava infestada de serpentes, escorpiões, etc. (Deut. 18:15); daí que cada dia ocorriam milagres da proteção divina. Porém, o Senhor repentinamente retirou Sua proteção e permitiu que as serpentes atacassem o povo." (Do comentário sobre Números 21:6.)

A Desgraça de Saul

"Tendo-se retirado de Saul o Espírito do Senhor, da parte dEste um espírito maligno o atormentava. Então os servos de Saul lhe disseram: Eis que agora um espírito maligno, enviado de Deus, te atormenta..." 1 Sam. 16:14 e 15. Os autores do SDABC assim comentaram estes versos:

"Saul havia resistido ao Espírito de Deus - havia cometido o pecado imperdoável - e nada mais podia fazer-lhe o Senhor. O Espírito de Jeová não se retirou arbitrariamente de Saul, mas, sim, foi Saul quem se rebelou contra Sua direção e deliberadamente se excluiu da influência do Espírito. Isto deve ser entendido em harmonia com o Salmo 139:7 e com o princípio fundamental do livre arbítrio. Se Deus, por meio de Seu Espírito, houvesse imposto Sua vontade a Saul, contrariando os desejos deste, teria feito do rei uma mera máquina.

"As Escrituras, às vezes, representam a Deus como se Ele fizesse o mal que não impede diretamente. Em realidade, ao dar a Satanás uma oportunidade para demonstrar seus próprios princípios, Deus limita Seu próprio poder. Obviamente, existem limites que Satanás não pode ultrapassar, porém dentro de sua esfera limitada tem a permissão divina para atuar. Dessa maneira, embora seus atos sejam contrários à vontade divina, não pode fazer nada a menos que Deus lhe permita; e tudo o que fazem ele e seus maus espíritos, é feito com a permissão de Deus. Portanto, quando o Espírito de Deus foi retirado de Saul, Satanás ficou em liberdade para agir."

II Crônicas 18:18-22

"Micaías prosseguiu: Ouvi, pois, a palavra do Senhor: Vi o Senhor assentado no Seu trono, e todo o exército do Céu estava à Sua direita e à Sua esquerda. Perguntou o Senhor: Quem enganará Acabe, o rei de Israel, para que suba e caia em Ramote de Gileade? Um dizia desta maneira, e outro de outra. Então saiu um espírito, e se apresentou diante do Senhor, e disse: Eu o enganarei. Perguntou-lhe o Senhor. Com quê? Respondeu ele: Sairei, e serei espírito mentiroso na boca de todos os seus profetas. Disse o Senhor: Tu o enganarás, e ainda prevalecerás; sai, e faze-o assim. Eis que o Senhor pôs o espírito mentiroso na boca de todos estes teus profetas, e o Senhor falou o que é mau contra ti."

Este é outro daqueles textos "difíceis de entender, que os ignorantes e instáveis deturpam" (II Pedro 3:16). O SDABC assim o explica:

"Esta é uma visão parabólica e deve ser interpretada como tal. Nela Deus é representado como fazendo aquilo que Ele não evita acontecer. Deus não força a vontade. Quando o pecador obstinadamente escolhe seguir o erro, Ele não intervém.

"Desde que Deus é soberano, Sua recusa em restringir as forças malignas é vista como se fosse Ele próprio que enviasse diretamente o mal.... Assim foi no caso de Acabe. Satanás já estava trabalhando através da agência dos falsos profetas, e Deus simplesmente não impediu a maldição que o rei tinha escolhido por si mesmo.

"A ordem divina nessa visão parabólica representa a permissão. Satanás desejava levar Acabe à morte, e o Senhor não o impediu. Enquanto a restringente mão de Deus está estendida, não é permitido a Satanás ferir ou matar; mas quando a mão de Deus é removida, então Satanás avança em seu trabalho de morte e destruição."

A Destruição de Jerusalém

Na parábola registrada em 5. Mateus 22:1-14, de modo figurado, foi profetizada a destruição da cidade de Jerusalém: "O rei ficou irado e, enviando as suas tropas, exterminou aqueles assassinos e lhes incendiou a cidade." S. Mateus 22:7.

O significado dos símbolos parece evidente: Deus, o Pai, é "o rei'; "as tropas", o exército romano liderado por Tito; "os assassinos", os judeus que crucificaram a Cristo e perseguiram e mataram os cristãos; e "a cidade", Jerusalém.

Substituindo os símbolos por sua aparente significação, seria lido em S. Mateus 22:7: "Deus ficou irado e, enviando o exército romano liderado por Tito, exterminou os judeus, que crucificaram a Cristo e perseguiram e mataram os cristãos, e lhes incendiou Jerusalém." Porém, não foi exatamente isto que aconteceu.

Ao comentar a destruição de Jerusalém, Ellen G. White escreveu:

"Os judeus haviam forjado seus próprios grilhões; eles mesmos encheram a taça da vingança. Na destruição completa que lhes sobreveio como nação, e em todas as desgraças que os acompanharam depois de dispersos, não estavam senão recolhendo a messe que suas próprias mãos semearam. Diz o profeta: 'Para tua perda, ó Israel, te rebelaste contra Mim', 'pelos teus pecados tens caído' (Oséias 13:9; 14:1). Seus sofrimentos são muitas vezes representados como sendo castigo a eles infligido por decreto direto da parte de.Deus. E assim que o grande enganador procura esconder sua própria obra. Pela obstinada rejeição do amor e misericórdia divina, os judeus fizeram com que a proteção de Deus fosse deles retirada, e permitiu-se a Satanás dirigi-los segundo a sua vontade. As horríveis crueldades executadas na destruição de Jerusalém são uma demonstração do poder vingador de Satanás sobre os que se rendem ao seu controle.

"Não podemos saber quanto devemos a Cristo pela paz e proteção de que gozamos. E o poder de Deus que impede que a humanidade passe completamente para o domínio de Satanás. Os desobedientes e ingratos têm motivo de gratidão pela misericórdia e longanimidade de Deus, que contém o cruel e pernicioso poder do maligno. Quando, porém, os homens passam os limites da clemência divina, a restrição é removida. Deus não fica em relação ao pecador como executor da sentença contra a transgressão; mas deixa entregues a si mesmos os que rejeitam Sua misericórdia, para colherem aquilo que semearam. Cada raio de luz rejeitado, cada advertência desprezada ou desatendida, cada paixão co temporizada, cada transgressão da lei de Deus, é uma semente lançada, a qual produz infalível messe. O Espírito de Deus, persistentemente resistido, é afinal retirado do pecador, e então poder algum permanece para dominar as más paixões da alma, e nenhuma proteção contra a maldade e inimizade de Satanás." - O Grande Conflito, págs. 32 e 33.

Conclusão

Os textos citados na introdução desta pesquisa, não podem ser usados como provas de que Deus seja o responsável pelo mal, pois a fonte do mal é a desobediência às instruções divinas, o pecado, cujo autor é Satanás. Aquelas passagens, na verdade, dão ênfase à soberania absoluta de Deus, também apresentada pelo profeta Daniel, que disse ao rei Nabucodonosor: "O Altíssimo tem domínio." Dan. 4:17.

"... Deus está sempre a 'executar silenciosamente, pacientemente, os conselhos de Sua própria vontade'... Quer Deus ordene, permita ou intervenha, 'o complicado jogo dos eventos humanos está sob divino controle' e um soberano propósito tem manifestamente estado a operar através dos séculos." (Do comentário do SDABC sobre Daniel 4:17.)

Nada e ninguém pode destruir ou ferir mesmo a menor e mais indefesa das criaturas de Deus, sem a permissão divina. Jesus disse: "Não se vendem dois pardais por um asse? e neIlhum deles cairá em terra sem o consentimento de vosso Pai. E quanto a vós outros, até os cabelos todos da cabeça estão contados. Não temais pois! Bem mais valeis vós do que muitos pardais." S. Mat. 10:29-31. -- Publicado na Revista Adventista, fevereiro de 1986, págs. 10-13. Nessa ocasião, Robson Ramos trabalhava como um dos editores da Casa Publicadora Brasileira.

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