"Nós, Gays, Somos a Favor da Religião e Estamos em Todas"

Primeiro gay em alto posto na Casa Branca
diz que a sociedade precisa aceitar que há
homossexuais em todos os lugares

Gabriela Carelli

 
AP
"Somos a favor da religião, da família e do modo republicano de governar. Não há nada de estranho em ser gay e conservador"

O americano Scott Evertz é personagem de um feito inédito na história dos Estados Unidos. Nesta segunda-feira, ele toma posse como diretor do Departamento Nacional de Política contra a Aids e torna-se o primeiro gay assumido em um alto cargo na Casa Branca. A indicação feita pelo presidente George W. Bush, na semana passada, é uma decorrência de sua militância como líder da ala homossexual do Partido Republicano. Aos 38 anos, vivendo há sete com um companheiro, ele não vê contradição entre sua orientação sexual e a ênfase conservadora do partido em assuntos como religião e família. "Nós, gays republicanos, somos a favor da religião, da família e da maneira republicana de governar. Só nossa orientação sexual é diferente", diz. Essa não é sua única postura inusitada. Formado em teologia, Evertz é um católico tradicionalista, de freqüentar a missa, apesar de a Igreja condenar o homossexualismo. Depois de tentar, sem sucesso, eleger-se deputado pelo Estado de Wisconsin, ele profissionalizou-se como militante da causa homossexual. Na semana passada, de Wisconsin, Evertz concedeu esta entrevista a VEJA.

Veja – Como o senhor explica a indicação de um gay assumido para um alto cargo na Casa Branca?
Evertz – Existe um slogan comum entre os movimentos gays americanos: "Nós estamos em todo lugar". A sociedade americana não pode mais nos desprezar. Estamos em todas as profissões, coisa que não acontecia uma década atrás. É perfeitamente lógico que um gay ou uma lésbica esteja na Casa Branca, ocupando um alto posto. Já estava na hora de isso acontecer nos Estados Unidos, pois ocorre em vários países da Europa. É uma prova de que os Estados Unidos estão se dando conta da importância de seus gays.

Veja – Como o senhor se sente a respeito do fato de que a principal razão da escolha presidencial foi sua orientação sexual?
Evertz – Em primeiro lugar, é importante lembrar o que o presidente Bush disse durante a campanha eleitoral: orientação sexual não é um fator discriminatório. Ele escolhe pessoas qualificadas e afins com a ideologia republicana. Ainda assim, minha indicação é uma decisão inédita. Com certeza, minha presença num alto cargo da Casa Branca terá um enorme impacto para a causa gay. Cada vez mais os americanos terão de se conformar com nosso avanço.

Veja – O Partido Republicano representa o conservadorismo nos Estados Unidos. Como um militante gay pode tornar-se republicano?
Evertz – Quando o assunto é Partido Republicano, sempre se pensa primeiro nas firmes posições a respeito de família e religião, em homens carrancudos e rígidos. Mas existem outras bandeiras importantes, como a visão econômica e social, a forma de governar, o modo de lidar com a violência e a saúde pública. São posições que agradam às pessoas, independentemente de suas preferências sexuais. Nós, gays republicanos, somos a favor da religião, da família e da maneira republicana de governar. Não há nada de inconsistente em ser gay e republicano ao mesmo tempo. Quem não é americano supõe que gays e lésbicas politizados têm de ser democratas, comunistas ou verdes. Isso é uma grande bobagem.

Veja – Mas o Partido Democrata não é tradicionalmente mais atento às reivindicações da militância gay?
Evertz – O Partido Republicano, diferentemente do que pode parecer, está fundamentado, antes de tudo, no princípio da liberdade. É o partido de Abraham Lincoln, nosso grande presidente que exterminou a escravidão nos Estados Unidos. É também o partido que acredita na livre empresa, no capitalismo e no governo descentralizados. Não há inconsistência entre esses princípios e ser gay.

Veja – Durante seu governo, o democrata Bill Clinton declarou-se o melhor amigo dos gays. O senhor concorda?
Evertz – Clinton prometeu muito, mas não fez nada. Ele contratou gays para sua administração, mas não os colocou em altos cargos. O pior de tudo: prometeu oficializar o casamento entre gays e, pouco depois de assumir a Presidência, mudou de idéia. Também recuou na questão do homossexualismo nas Forças Armadas. Não posso negar, entretanto, que Clinton abriu as portas para a comunidade gay na política durante a campanha de 1996. Foi a primeira vez que um político olhou para os gays de modo sério. Mas ele só olhou.

Veja – O senhor já flertou com o Partido Democrata?
Evertz – Nunca tive interesse nesse partido. Partidos mais à esquerda, como o Democrata, nos usam o tempo todo. Trabalhamos em suas campanhas, conseguimos votos para eles, doamos dinheiro. E, depois, temos muito pouco retorno. Os americanos têm a impressão de que o Partido Democrata é bom para os gays e que o Republicano não é. Isso está mudando. Temos gays dos dois lados. Hoje, os republicanos recebem 25% dos votos gays. Já é muita coisa.

Veja – O que um político como George W. Bush espera das organizações homossexuais?
Evertz – Os gays republicanos representam hoje 1 milhão de votos. Imagine se nas últimas eleições tivéssemos votado em Al Gore. Mas não é só isso. O partido percebeu uma tendência, a da militância gay republicana. Não acho que seja oportunismo. Apenas uma forma de se beneficiar de uma situação real.

Veja – Quando os gays começaram a entrar para o Partido Republicano?
Evertz – Na verdade, eles sempre existiram, mas mantinham sua orientação sexual sob sigilo. Eram invisíveis. Nós decidimos aparecer no começo dos anos 90, quando nos organizamos para formar grupos de gays republicanos. Há dez anos, contavam-se nos dedos aqueles dispostos a assumir sua homossexualidade. Hoje somos 10 000 militantes e estamos organizados em 46 dos cinqüenta Estados americanos. Minha nomeação e a força dos gays na política são o resultado de um ato de heroísmo de homens e mulheres que já eram membros do partido mas não tinham coragem de se expor.

Veja – Como é possível a convivência gay com a linha-dura republicana?
Evertz – Tivemos muita dificuldade de impor nosso posicionamento político por causa de nossa orientação sexual. Principalmente nos Estados do meio-oeste e do sul, muito conservadores e religiosos. É o caso em Wisconsin, Estado no qual eu sou líder. A situação é bem diferente em lugares cosmopolitas, como Nova York e Califórnia, nos quais o número de gays assumidos é muito maior.

Veja – O senhor fez sua base política num dos Estados mais conservadores dos Estados Unidos. Como pode considerar-se representante dos moradores de lá, se a maioria deles condena o homossexualismo?
Evertz – As pessoas de lá são incrivelmente corretas e conservadoras, como eu.

Veja – Os cristãos fundamentalistas, que consideram o homossexualismo uma doença, formam um grupo influente dentro do Partido Republicano. Como é possível grupos tão diferentes ocupar o mesmo espaço?
Evertz – É difícil porque em alguns casos temos de concordar em discordar. Não podemos nos deixar afetar por aspectos com os quais não concordamos. Um crescente número de pessoas no Partido Republicano que acreditam no homossexualismo como um pecado não está conseguindo ter força suficiente para se destacar. Eles vão perder o jogo se continuarem a agir dessa forma.

Veja – E quanto ao grupo de republicanos que quer expulsar os gays do partido?
Evertz – A ala antigay no partido é um fenômeno novo, decorrente do surgimento dos gays declarados. Provavelmente esse grupo terá vida curta. Nossa estratégia partidária leva em conta que a maioria dos americanos acredita que gays e lésbicas devem ser tratados com dignidade e respeito.

Veja – O senhor estudou teologia e é católico praticante. Como consegue conciliar sua orientação sexual com a posição oficial da Igreja, que condena o homossexualismo?
Evertz – Certamente há nos ensinamentos da Igreja regras das quais eu discordo. Ocorre o mesmo em relação ao Partido Republicano. Eu não penso nessas divergências quando estou trabalhando, pois trabalho pensando em trazer mudanças para a sociedade. No plano religioso, concentro os esforços em meu amor pela Igreja porque quero que essa instituição mude e receba os gays.

Veja – A que tipo de mudança o senhor se refere?
Evertz –
Quero integrar as esferas tradicionais, como a Igreja e o Partido Republicano, com as novas concepções sociais. Os gays organizados representam hoje uma forma nova de encarar a vida. Casam, adotam crianças. Os gays não querem mais revolucionar o mundo. A revolução sexual ocorreu na década de 70 e já é fato consumado. Agora é a hora da estabilidade, é a hora de se impor, de conquistar lugares. Estamos fazendo isso.

Veja – O senhor freqüenta a Igreja?
Evertz – Tento comparecer com bastante freqüência, pois tenho forte crença nos sacramentos. Eu realmente não ligo para o que a Igreja acha de minha preferência sexual. O sentimento antigay existente na Igreja deve-se ao fato de se tratar de um assunto muito novo para uma instituição tão velha. Apesar de a Igreja Católica considerar o homossexualismo uma aberração, poucos fiéis ainda são contrários aos gays. Na verdade, eu encontro muitos católicos que me dão apoio. Realmente isso não é relevante para minar minha vontade de praticar o catolicismo.

Veja – A Igreja só aceita o sexo dentro do casamento e considera que sua finalidade é a reprodução. Como um gay pode se encaixar?
Evertz – Há um outro slogan nos movimentos gays que fala disso. Aliás, é uma frase que geralmente evito por ser muito usada por gays democratas. Diz que "o amor faz uma família". Nós não podemos dizer que um casal de homens ou de mulheres não forma uma família se há amor entre eles.

Veja – O senhor tem uma família?
Evertz – Sim. Vivo há sete anos com o mesmo parceiro e acredito nessa relação como um casamento. Existe amor. Juntos, nós formamos um casal normal, que mora na mesma casa, divide as contas e faz tudo para manter os valores morais e ajudar a criar nossa filha, hoje com 19 anos. Na verdade, ela é filha de meu parceiro que adotei como minha. Esse é um dos motivos que nos levam a ser tão rígidos com os valores morais. Educamos uma criança juntos.

Veja – O senhor defende o homossexualismo como um direito de cada um lidar com sua sexualidade. Mas condena o aborto. Não há nisso uma contradição?
Evertz – Eu creio solidamente que a existência humana está baseada nos direitos civis. Isso basta para crer que uma criança ainda não nascida já é um ser humano, tem direito à vida da mesma forma que os gays e as lésbicas têm direito a viver como eles bem entenderem.

Veja – Como o senhor explica para os heterossexuais que ser gay não é errado?
Evertz – Digo que ser gay não é uma escolha. É um destino. Nós nascemos com isso e somos seres humanos também. Por esse motivo merecemos respeito e direitos iguais.

Veja – O que o senhor diria para um pai que descobre que seu filho adolescente é gay?
Evertz – Em primeiro lugar, calma. Uma reação violenta pode ser muito negativa. Eu lhe diria que seu filho nasceu com essa inclinação e que sua escolha sexual não tem nada a ver com a educação que ele lhe deu. Muitos pais se condenam por seus filhos se tornarem gays. É importante que eles saibam que isso é normal, natural, uma coisa sobre a qual não temos controle. Eu também lembraria a esse pai que seu filho é ainda uma criança e que o amor desse filho pelo pai nunca vai mudar por causa de sua escolha.

Veja – O que o senhor pensa a respeito dos gays brasileiros?
Evertz – Eu não conheço a situação real da comunidade gay no Brasil. Apenas acompanho as notícias veiculadas pelos jornais sobre o preconceito contra os homossexuais, como o caso do gay morto por skinheads. É uma violência típica de países que ainda não estão avançados nos direitos dos homossexuais.

Veja – Mas nos Estados Unidos os gays também sofrem violências. Além disso, muitos Estados americanos punem com cadeia o homossexualismo, coisa que não ocorre no Brasil. Como se define "atraso" nessa questão?
Evertz – A violência contra homossexuais diminuiu bastante nos últimos anos. O que ocorre nos Estados Unidos é que existe uma pequena parcela da população extremamente preconceituosa, que ataca todas as minorias, mas ela é duramente combatida. O fato é que tanto o Brasil quanto os Estados Unidos estão atrasados em relação aos direitos dos homossexuais. A Europa tem exemplos do que pode ser feito para realmente igualar os homossexuais aos heterossexuais.

Veja – Os gays americanos conquistaram direitos iguais aos dos heterossexuais. São protegidos de discriminação no trabalho e já ocupam altos cargos no governo. Mas continuam exigindo mais e mais coisas. A igualdade não foi suficiente e agora os gays querem privilégios especiais?
Evertz – Eu só quero ser tratado como qualquer outro americano. Fico muito chateado porque eu e meu companheiro ainda não conseguimos ter o direito básico de nos casar. Como qualquer outro americano tem.

Fonte: http://www2.uol.com.br/veja/180401/entrevista.html 

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